Telegram: liberdade de expressão para quem?

Por Luiz Sérgio Canário (*)

A determinação pelo STF para bloquear o funcionamento do aplicativo de mensagens Telegram no Brasil trouxe à tona uma enorme discussão na esquerda sobre a questão da liberdade de expressão. Foi um ataque a essa liberdade, a decisão tomada?

Como tudo em uma sociedade dividida em classes, especialmente no capitalismo, a ideologia perpassa todos os princípios do convívio social. Ela é uma das chaves mais importantes da dominação de uma classe sobre a outra. Ela faz parecer que a sociedade tal como existe é a melhor possível e que seus valores são eternos e devem ser respeitados por todos para uma boa convivência social. Em um dos seus escritos, Marx trata a ideologia como “a falsa consciência”. Uma consciência que cremos ser os nossos valores mais profundos e que, no entanto, não é nossa, vem de fora para dentro. É a consciência da classe dominante que se faz como nossa. Por isso, ela é falsa, não é de fato nossa. Como em muitos outros escritos de Marx, há divergências quanto ao sentido do que ele disse, que é até mesmo dito de forma diferente em outras passagens suas.

O liberalismo clássico do século XVIII apontava uma constante tensão entre a liberdade e a igualdade. Em tese, a igualdade destruiria a liberdade do ser diferente. Em nome da igualdade, da obrigatoriedade de se adequar ao grupo social, a liberdade é comprometida e passamos a viver sobre uma espécie de ditadura da maioria. Isso acaba, no limite, por conduzir a discussão de por limites à democracia, para que a igualdade não comprometa a liberdade, que é o que deve ser preservado.

A liberdade é um conceito caro à tradição marxista. Para Marx, superada a sociedade de classes, reinaria uma liberdade quase absoluta para todos os indivíduos. Está na base do convívio social, o pleno e livre desenvolvimento de cada pessoa. Para Marx, a liberdade não existe se estamos sob o jugo de outra pessoa ou se estamos em estado de privação. Ambas as situações bloqueiam a liberdade de definir o que queremos, como agimos e por onde vamos.

A liberdade, pois, não é um conceito abstrato ou divino ou ainda pertencente a um dado regime de governo. A extrema-direita tenta se apropriar desse conceito como paladinos da liberdade. Das liberdades de opinião, de ir e vir, de vacinar ou não e tantas outras. Trabalha para transportar para a nossa vida privada conceitos discutidos para a esfera pública. A sociedade deve se dobrar a vontade dos indivíduos e não ao contrário. Seu posicionamento em relação ao par liberdade-igualdade é de bloquear a democracia agindo como paladinos das liberdades individuais. Não por acaso são muito simpáticos a toda sorte de regimes fascistas. Muitos até mesmo pelo nazismo.

A questão do Telegram nesse embate com o STF tem sido remetida a tão defendida liberdade de expressão. Sem entrar no mérito de que o Telegram hoje é uma terra sem lei, disponível para todo tipo de banditismo, a plataforma foi suspensa, não por ter atacado a liberdade de expressão, mas sim por não ter cumprido uma ordem judicial. Isso é comum nas práticas da plataforma. Sua sede é em Dubai e é inalcançável pela justiça dos países. A justiça brasileira solicitou a exclusão de posts e contas que foram consideradas, certo ou errado, distribuidoras de fakenews e de ataques a instituições e pessoas. Como não cumpriu, e ignorou a solicitação, foi punida. E assim como já havia acontecido na Alemanha, acabou por cumprir a ordem judicial e o STF retirou a solicitação de fechamento, que a rigor não foi cumprida. Pode-se dizer que o Telegram preferiu sacrificar a “liberdade de expressão” de seus usuários a perder usuários no Brasil. Vão-se os pequenos anéis e ficam os grandes, além dos dedos.

Parte da esquerda saiu batendo no STF por ter sido arbitrário e que isso foi um grande atentado contra a liberdade de expressão. Não foi.

O Telegram, como o WhatsApp, o SMS, a telefonia e os Correios, é uma plataforma de troca de mensagens. Um instrumento de comunicação ponto a ponto, pessoa a pessoa, e ponto a multiponto, pessoa a grupo. Todas as formas de comunicação estão sujeitas a regras e regulamentos. Inclusive para a defesa do sigilo das comunicações. Os Correios têm que garantir a integridade e o sigilo da correspondência que manipula. A telefonia tem que garantir a segurança e inviolabilidade ponto a ponto das conversas, além de terem que obedecer a um plano de numeração que é estabelecido mundialmente por um órgão da ONU. Em todos esses casos há leis específicas e são aplicadas as leis mais gerais. Por que razão as plataformas na internet não querem se submeter a nenhum tipo de lei ou regulamento?

O Uber, por exemplo, se recusa a ser classificado como uma empresa de transporte e diz que é uma empresa de tecnologia que tem um aplicativo usado por terceiros. Tudo para não ter que estar sob a legislação e tributação que trata de empresas de transporte. Não é posição legalista ou de defesa ampla do estado democrático e de direito. É preciso que se tenha claro o papel dessas empresas e as tentativas delas de não se submeterem aos estados nacionais e tentarem sempre estar acima desses estados em uma região sombria. Até pelos laços próximos dessas empresas com o capital financeiro e o neoliberalismo. Por exemplo, de que sobrevive o Telegram? A princípio eles não vendem nada, não têm nenhum faturamento.

Como um componente da ideologia com que a burguesia dá naturalidade a sua dominação, a liberdade de expressão não é um valor absoluto. Ela está sendo colocada muito fortemente pelos setores da extrema-direita como força para manter funcionando um aplicativo que vai lhes ajudar muito nas tentativas de fraudar as eleições. Essa posição de extrema defesa da “liberdade de expressão” precisa ser denunciada como uma tentativa de se controlar, através de ferramentas com pouca supervisão, o debate eleitoral. Não podemos confundir o combate ideológico à extrema direita com o apoio ao STF ou as leis e instituições do Estado burguês. A liberdade de expressão que nos interessa não é a que permite que forças de extrema-direita a usem para praticar seus crimes, distorcer informações, destruir reputações, interferir no debate político de forma predatória ou interferir no resultado das eleições.

A internet trás grandes desafios para que se possa ter algum controle social sobre o que circula por ela. Esse controle não pode ser confundido com censura ou qualquer forma de cerceamento da liberdade de expressão. Mas devemos entender essa liberdade de expressão no contexto ideológico da dominação de uma classe sobre a outra. Por isso, não há que se defender incondicionalmente e sim dentro do contexto da luta de classes.

(*) Luiz Sérgio Canário é militante petista em São Paulo – SP


(**) Textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da tendência Articulação de Esquerda ou do Página 13.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *