Sobre a filha que não tenho

Foto de capa da edição de quarta-feira (21) da Folha de S. Paulo. (Foto: Leo Correa/AP)

 

Por Suelen Aires Gonçalves*

 

Desde que vi a imagem da capa da Folha de São Paulo (21/02/2018), cuja legenda a descreve como “[m]ilitares inspecionam mochilas de alunos em operação em favela na zona norte do Rio”, vi uma fotografia de uma garota negra em evidência olhando com medo para os militares armados com fuzis revistando as mochilas de seus colegas no início do ano letivo das escolas cariocas, estou com inúmeras inquietações. “Eles tem coragem de revistar crianças”, foi minha primeira inquietação, já com um nó na garganta e a segunda inquietação veio logo após: “Essa menina poderia ser minha filha”.

Não sei se a “inspeção” ocorreu em frente ao portão de alguma escola da zona norte da cidade, onde essas crianças estavam se deslocando para o início das suas aulas. Tampouco sei se a reportagem informa esse detalhe – até porque não assino a Folha. Ainda assim, considerando a hipótese que, para realizar essa inspeção, o local mais adequado para encontra estes alunos seria, justamente, o portão da escola que se dirigiam, acho plausível assumir, por ora, que é uma hipótese válida. Outra hipótese que posso considerar é que esta escola encontra-se, provavelmente, em alguma comunidade periférica do Rio de Janeiro, tendo em vista a cobertura midiática dos esforços do governo em garantir mandatos coletivos de busca e apreensão apenas nestas comunidades.

Agora, para ajudar num exercício de alteridade, pergunto: qual seria a reação, dos setores médios e altos da opinião pública, se essa mesma inspeção fosse realizada em escolas da zona sul do Rio de Janeiro, em bairros valorizados e de classe média alta e classe alta? Qual seria a reação? Seria tomada com tanta naturalidade?

Sou uma mulher adulta, tenho 31 anos e por alguns segundos revivi minha memória de infância.  Carrego uma lembrança negativa e marcante da minha infância que alguns já me ouviram falar, mas para os que não sabem, eis um pouco da história.  Vivi desde criança em uma ocupação urbana, chamada Nova Santa Marta na cidade de Santa Maria/RS, mais conhecida como minha doce favela, como diria Nei d’Ogum, grande amigo e saudoso companheiro.  Não me recordo bem o ano, mas entre 1995 e 1996 nossa ocupação foi sitiada pela polícia militar, que no Rio Grande do Sul ainda é chamada de Brigada Militar. O motivo para tal ação, hoje óbvio, era de “conter a invasão”. Por “invasão”, leia-se “ocupação urbana”. Ela estava tomando uma proporção grande para o momento histórico. A “invasão” era desumanizada pelas autoridades e noticiários, seus protagonistas eram uma massa de “sem-tetos”, compostos de “tudo o que não presta”, desde “bandidos”, “putas”, “drogados” e por aí vai.

Assim como hoje, no Rio de Janeiro, o que estava colocado pela operação da Brigada Militar na Nova Santa Marta era a criminalização da pobreza e da população negra, majoritariamente presente no interior do Rio Grande. Hoje, novamente, a intervenção militar no Rio de Janeiro mostra a continuidade deste tipo de operação. As armas presentes e o Estado ausente.

Tenho 31 anos, a menina da foto que me chocou hoje poderia ser minha filha, caso tivesse optado em tê-la. Vivemos situações semelhantes, cada uma a seu tempo. Situações de exposição direta a violência simbólica do estado, violação de nossos direitos básicos, produção de morte política e muitas vezes física, a necropolítica, como diria Achille Membe.

Eu, moradora de uma ocupação no interior do Rio Grande do Sul, ela moradora da favela no Rio de Janeiro. Ambas mulheres, ambas negras. A guerra é contra nós, o extermínio da população negra está em vigor neste país desde seu nascedouro. Vivemos uma guerra constante contra a maioria da população neste país. A “guerra às drogas”, a perseguição aos “bandidos”, tem endereço e tem cor – é periférica e negra.

Recordei-me dos diálogos com minha mãe, dona Maria de Lourdes, mais conhecida como “Dona Lurdinha”. Algo em comum nos une, lembro de outras mulheres negras expressando o mesmo diálogo e preocupação. Ela falava sobre preconceito de classe, de gênero, sobre racismo e como combate-los, mas também falava de autoestima, de amor e sobre afeto como diria Bell Hooks. Hoje entendo minha mãe, ela sempre nos alertava sobre nossos direitos e deveres como cidadãos em formação que éramos. Eis umas das suas frases recorrentes de seus longos diálogos: “nós, negros, temos nossos direitos… conquistados por muita luta e ninguém tem o direito de violá-los, vocês entenderam”? Hoje, não teria certeza de afirmar a mesma frase para minha filha. Minha mãe, em 1988, lutou pela constituição cidadã. Hoje não a temos para salvar nossos filhos e filhas. Vivemos um estado de exceção desde muito tempo, mas hoje, mais uma vez, eles buscam legalizar o nosso extermínio.

“Te cuida, minha filha.  Leva teu documento, teu lanche e não corra”. Eis o que, quem sabe, diria à filha que não tenho.

 

* Suelen Aires Gonçalves é doutoranda em sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

 

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