Primeiro turno de São Paulo: crônica de uma derrota anunciada

Por Luís Sérgio Canário (*)

No livro Crônica de Uma Morte Anunciada de Gabriel Garcia Marques, Santiago Nasar caminha em direção à morte. Por onde passa todos sabem o que está para acontecer, mas mesmo assim ele segue adiante até ser morto a facadas pelos gêmeos Pedro e Pablo. Até ele mesmo já sabia que iria morrer.

A candidatura de Jilmar Tatto nessa eleição já nasce com o seu final previsto, tal qual a morte de Santiago. Era só estabelecer o roteiro entre o nascimento e a morte.

A família Tatto é sempre associada às piores práticas para controlar a máquina e a burocracia do partido. A região em que eles concentram sua maior força política é até chamada de Tattolândia. O fato é que por uma outra razão eles são uma força política grande na cidade de São Paulo.

O roteiro dessa derrota tem início quando ele demonstra a intenção de se candidatar. Desde aí já se fala que se o candidato fosse ele “eu não vou fazer campanha”, diziam alguns. Exercendo o seu legítimo direito ele se inscreve para disputar as prévias. Outros 6 postulantes também se inscrevem. Todo o arco político do partido em São Paulo está representado por essas candidaturas, direta ou indiretamente. A força majoritária, a CNB, estava representada por dois candidatos: Tatto e Padilha. O partido havia decidido que a candidatura à prefeitura seria escolhida em uma prévia com participação de todos os filiados.

O passo seguinte do roteiro rumo a derrota se dá quando, em razão das restrições impostas pela pandemia, o Diretório Municipal resolve, com apoio da Direção Nacional, reduzir a participação no processo de escolha da candidatura a um colégio eleitoral formado pelos membros do Diretório Municipal, sabidamente controlado por Tatto e pela CNB e seus parceiros. A rejeição sobe de tom. Todos sabiam que esse colégio eleitoral era construído sob medida para ele sair vitorioso. Revolta no parquinho! Todas as forças políticas e a base do partido denunciam a manobra. A CNB racha com Padilha do lado de todos os outros candidatos reivindicando prévias amplas. Padilha, que entendia ter mais chances em um processo amplo, se junta a gritaria contra a decisão do DM. A resistência aumenta.

Em uma solução de conciliação entre as duas facções da CNB é apresentada uma solução: ampliar o colégio trazendo todos os membros de todos os 37 zonais do partido na cidade, resultando em cerca de 600 pessoas com direito a voto. Mais uma vez a CNB resolve suas disputas internas arrastando todo o partido para a discussão. Essa solução é sacramentada – com a posição contrária da Articulação de Esquerda, que resolve não participar do processo – por todas as forças políticas e candidaturas. Em seguida, em um movimento para tentar barrar Tatto, todas as candidaturas se retiram apoiando Padilha, que acha que com esse movimento conseguiria batê-lo. Não consegue e Tatto é escolhido candidato por pequena margem de votos. A força dele no partido e na CNB é posta à prova e ele ganha sozinho contra todos. A rejeição chega às alturas. Se fala abertamente em não fazer campanha.

O candidato natural do PT seria Fernando Haddad, ex-prefeito e ex-candidato do PT à presidência em 2018. As forças de esquerda falavam que se ele fosse o candidato poderia ser construída uma frente de apoio à sua candidatura. Ele era colocado como o candidato reconhecido por todos como viável eleitoralmente. O que tinha chances reais de vitória. Mas Haddad se recusa a atender ao chamado. Não entende o momento e o que isso representava para o partido e para a esquerda. Prefere se omitir e não tem a coragem de enfrentar a tarefa que todo o partido lhe impunha. As consequências são rápidas.

O PSOL indica como candidato Guilherme Boulos, com Luiza Erundina como vice. Isso reduz a margem para a existência de uma candidatura de unidade da esquerda e dos setores progressistas. Logo em seguida o PCdoB faz o mesmo. Os três maiores partidos resolvem cada um lançar o seu candidato. O PT fica com dificuldades até para indicar o candidato a vice-prefeito. Acaba por indicar uma solução caseira, outro homem branco de meia-idade: Carlos Zarattini.

O impedimento da formação de coligações nas eleições proporcionais lança uma dificuldade grande para os partidos menores. O PCdoB, por exemplo, tem conseguido eleger parlamentares em São Paulo em função de coligação com o PT. Sozinho não tem votos para isso. Com a impossibilidade das coligações proporcionais o espaço para coligações na eleição majoritária fica ainda mais estreito. As estratégias de sobrevivência em certa medida passavam por ter uma candidatura à prefeitura própria.

O roteiro da derrota nessa etapa toma a forma que teria até o desfecho. O PT tem um candidato que dividiu o partido. Com pouco crédito até mesmo entre os mais fiéis militantes. Recebe críticas de todos os lados e é pressionado por gregos e troianos a renunciar à candidatura para apoiar Boulos e forçar uma frente de esquerda já no primeiro turno. E essa conversa vai rolar até o dia das eleições, com uma desastrada fala de Lula.

Foram 14 candidatos à prefeitura, com cinco coligações e nove partidos políticos concorrendo isolados. Os principais foram:

· Bruno Covas – PSDB – atual prefeito

· Jilmar Tatto – PT

· Guilherme Boulos – PSOL

· Márcio França – PSB – ex-governador

· Celso Russomanno – Republicanos

Além desses lançaram candidaturas também o PSD, PCdoB, PSL, PCO, Patriota, PRTB, PSTU e Rede. Covas e Russomano largaram em primeiro e segundo lugares, seguidos por Marcio França e Boulos. Tatto vinha depois desse bloco, demonstrando as dificuldades que teria pela frente. Acaba a eleição em quinto lugar, atrás de Covas, Boulos, Marcio França e, inacreditavelmente, de Artur do Val, o Mamãe Falei, do Patriota. Um pouco conhecido, fora do Youtube, youtuber surgido nos protestos de direita pelo impeachment. Pela primeira vez o PT não era um dos dois partidos mais votados no primeiro turno.

Desde o anúncio da candidatura Tatto sofreu todo tipo de pressões para renunciar. Ao longo do tempo os militantes foram sendo cooptados pela ideia do voto útil em favor de Boulos. Essa onda crescia a cada dia até virar o tsunami que desabou sobre o candidato. Várias expressões antigas do partido, como Marilena Chauí e André Singer, declararam voto em Boulos. A dificuldade de trazer a militância para a campanha era grande. E mais uma vez a campanha de rua foi sustentada por militância paga.

Vários candidatos a vereança pelo partido passaram a ou já lançaram suas campanhas escondendo os símbolos do partido e sua candidatura, numa postura oportunista e traidora. Nenhum deles se elegeu. Assim, a candidatura anunciada para morrer, morre de forma melancólica. No seu rastro o PT passa a ter 8 vereadores, antes eram 9, com idade média acima dos 60 anos, e somente uma mulher, Juliana Cardoso. Mesmo ela entrando no quarto mandato. Nenhuma renovação. Somente uma mulher. Suplicy é o grande puxador de votos, com 167.000 votos. O segundo mais votado do PT, Donato, aparece na longínqua posição 21 com 32.000 votos. O PSOL tem 3 dos 20 mais votados e elege 6 vereadores. Antes eram 2. Mesmo assim o PT, ao lado do PSDB, ainda tem a maior bancada.

O roteiro começa com uma decisão acertada, o PT lança candidatura própria; passa por um processo autoritário e antidemocrático de escolha do candidato; avança pela má vontade, e em certa medida sabotagem, de setores do partido; atravessa a onda do voto útil, que leva boa parte da militância para Boulos; e termina com o atropelo eleitoral no dia 15 de novembro de 2020. Data histórica que marca com muita força o nosso partido.

Mas o roteiro não foi escrito ao acaso. Como no livro de Garcia Marques, mesmo já se sabendo do fim, é importante saber a construção do desfecho e porque, apesar de conhecido, não foi impedido de acontecer.

Os métodos empregados para a indicação de Tatto foram os mesmos usados para a indicação de uma major da PM em Salvador e para o quase impedimento da candidatura de Marilia Arraes em Recife. Ou, em um exemplo menor, mas não menos importante, a composição com uma candidatura de direita em Belford Roxo, no Rio de Janeiro. Uma concepção autoritária e antidemocrática de funcionamento do partido. O desrespeito às bases do partido e o bloqueio à participação dos filiados nos processos de decisão. Com a desculpa da pandemia, a força majoritária, com a ajuda de boa parte do partido, impôs um processo meia-boca onde somente as direções dos zonais participaram. Somente a Articulação de Esquerda levou sua posição contrária ao processo às últimas consequências não participando das prévias. A força majoritária mais uma vez impôs seus métodos forçando a escolha entre dois de seus membros: Padilha e Tatto. Diga-se de passagem, o resultado eleitoral fosse Padilha o candidato seria igual ou até pior. Em justiça a ele, apesar de todos os pesares, ele foi um bom e combativo candidato. Não perdeu a garra e a vontade nem nos piores momentos. Mesmo quando Lula, no dia das eleições, falou que a candidatura de Tatto era fruto da própria teimosia, não exatamente com essas palavras. Padilha não seria melhor candidato que Tatto.

A direção política da campanha não conseguiu dar o tom adequado desde o início. Não percebeu a ameaça real para carregar votos e militantes petistas que foi candidatura do PSOL. Não mediu adequadamente o impacto de Luiza Erundina na chapa. Mais uma vez, apesar de ter tentado mais que em outras campanhas e ter conseguido algum avanço, não conseguiu ter uma presença forte nas redes sociais. Não trouxe ou formou nenhuma das tantas pessoas que têm grande penetração e público nas redes. Ainda agiu de forma amadora em um ambiente cada vez mais profissional.

Mas o que mais chama a atenção é a postura de parte dos nossos candidatos a vereança. Verdadeiros traidores, que deram as costas ao partido e seu candidato em uma conjuntura talvez a mais difícil. Esconderam o quanto puderam as possíveis referências ao PT, pareciam candidaturas independentes. E que ainda por cima incentivaram por puro oportunismo seus apoiadores a fazerem campanha para Boulos. Esses, o conselho de ética deveria chamar para conversar.

Agora é defender a candidatura de Boulos no segundo turno com força e garra. Mobilizar um partido ferido e com energias esgotadas. A esquerda e a classe trabalhadora paulistana precisam varrer o PSDB e sua política anti-povo e ultraliberal para a lata do lixo! Vamos a campanha.

(*) Luís Sérgio Canário é Secretário de Organização do DZ Pinheiros


(**) Textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da tendência Articulação de Esquerda ou do Página 13.

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