Por um plano de transformação democrática, popular e socialista do Brasil

Por Jandyra Uehara, José Genoíno, Natália Sena, Rui Falcão e Valter Pomar.

Este texto é uma contribuição ao documento “Por um plano de transformação do Brasil: outro mundo é necessário; outro país é preciso”, elaborado a partir do trabalho desenvolvido pelos Núcleos de Acompanhamento de Políticas Públicas do Centro de Altos Estudos da Fundação Perseu Abramo.

Concentramo-nos na primeira parte do documento, intitulada “MANIFESTO”, deixando para um segundo momento observações sobre as “MEDIDAS EMERGENCIAIS”. Como se verá, não se trata de emendas de redação, mas de uma abordagem diferente do que aquela que orienta o “plano de transformação”, dito “ponto de partida e não ponto de chegada”.

Na nossa visão, vivemos um momento histórico que exige maior aproximação entre política e economia, entre tática e estratégia, entre emergência e médio prazo. Embora o documento apresentado ao debate aponte num sentido correto, ele em nossa opinião não tira algumas conclusões essenciais.

Estamos de acordo em apresentar a “vida” como fundamento. E, também, com a necessidade de defender a vida, não apenas da pandemia, mas de “todas as outras ameaças, de tudo aquilo que a limita e reduz sua qualidade”.

Entretanto, chama atenção a parte inicial do documento atacar o racismo, o machismo, o sexismo, os preconceitos e a homofobia, o consumismo, os desequilíbrios ambientais e regionais, as políticas de austeridade e Estado Mínimo, a desigualdade socioterritorial, o autoritarismo, o ódio e a mentira…. mas não apontar o capitalismo como uma ameaça (talvez a maior de todas) contra a vida.

Lembramos, a este respeito, o discurso feito por Lula no 1º de Maio de 2020. A crítica por ele assestada  contra o capitalismo é perfeitamente condizente com a linguagem que percorre a parte inicial do documento.

No capítulo seguinte, “A crise além da pandemia”, há o reconhecimento de que “estamos atravessando a maior crise econômica e social da história do capitalismo, apenas comparável à devastação causada pela crise de 1929”. Na sequência, descreve os “traços mais cruéis de um modo de produção que já estava em crise e que é incapaz de eliminar a fome e a pobreza, e responsável por perpetuar a desigualdade social, o racismo estrutural, a violência de gênero e a exploração desmesurada de trabalhadores e recursos naturais”.

E diz, ainda, que vivemos “uma crise sistêmica de múltiplas dimensões, que projeta insegurança e medo generalizados, lançando profundas dúvidas sobre o futuro da nossa civilização e do nosso planeta”.

A questão é: se o capitalismo está na origem da crise sistêmica, daí decorre que deveríamos incluir, na parte anterior do “plano”, o capitalismo como uma das ameaças à vida. Do mesmo modo, e por coerência, a alternativa que nos caberia apresentar à crise sistêmica seria explicita e imediatamente… socialista!

A explicação para tais omissões está, em nossa opinião, na seguinte afirmação feita pelo documento: “A causa última dessa gravíssima crise está em homens e mulheres contaminados por velhas ideias e por políticas adoecidas. Na verdade, esta crise é fundamentalmente uma crise do modelo neoliberal, associado à financeirização extrema da acumulação do capital”.

Ou seja: a crise sistêmica do capitalismo é reduzida, por um passe de mágica, a uma crise do modelo neoliberal. Modelo sustentado não por uma classe social de capitalistas, mas por “homens e mulheres contaminados por velhas ideias e por políticas adoecidas”.

Por óbvio, este tipo de raciocínio nos desobriga de pensar uma alternativa socialista ao capitalismo: bastaria uma alternativa (ainda que capitalista) ao neoliberalismo.

No fundamental, concordamos com as críticas que o documento faz ao neoliberalismo. Mas:

1/não consideramos correto, nem teórica, nem politicamente, distinguir de forma absoluta neoliberalismo de capitalismo. O neoliberalismo é o “capitalismo realmente existente”. Por isso, é incorreto separar de forma absoluta a luta contra o neoliberalismo da luta contra o capitalismo;

2/supondo que fosse possível derrotar o neoliberalismo, sem derrotar o capitalismo, isto nos levaria de volta a algum tipo de “capitalismo organizado pelo estado com bem-estar social”. Que foi o ponto de partida do neoliberalismo dos anos 1980, transformando nossa proposta de “transformação do Brasil”, em certa medida, numa operação de volta ao passado;

3/a distinção incorreta (ver item 1 acima) entre capitalismo e neoliberalismo, presente no documento, possibilita que as políticas propostas para superar o neoliberalismo sejam tímidas e insuficientes. Até mesmo para atingir o “programa mínimo”, superar o neoliberalismo, é preciso almejar o “programa máximo”: superar o capitalismo;

4/a descrição sobre a insustentabilidade do mundo neoliberal, somada à incorreta distinção absoluta entre neoliberalismo e capitalismo, pode semear a confusão de que o neoliberalismo é uma ameaça ao capitalismo. E que, portanto, por absurdo, seria do interesse dos próprios capitalistas derrotar o neoliberalismo;

5/propomos que, na introdução do “programa”, haja uma reflexão sobre os conflitos geopolíticos em curso no mundo. Se estamos falando de um programa de transformação concreto, para uma sociedade concreta, em uma época concreta, é preciso perceber que o capitalismo neoliberal não é o mesmo em todos os lugares, da mesma maneira que a dinâmica dos grandes Estados imperialistas não é a mesma dinâmica dos Estados das demais nações. Neste sentido, se o documento carece de menções ao socialismo, também faz falta a categoria “imperialismo”.

A propósito, entendemos que, nas condições atuais do País, seja quem for o vencedor na disputa global em curso, o lugar estará “naturalmente reservado” ao Brasil é o de fornecedor de matérias-primas e importador de produtos industriais.

Sem alterar este “lugar” do Brasil no mundo, não há como transformar profundamente o restante da situação social, econômica, cultural e política em que nos precipitaram. A alteração tentada entre 1930/1980 foi, em grande medida, detida e revertida, não a partir de uma guerra, não a partir da colonização direta do país, mas a partir da iniciativa da própria classe dominante. Motivo pelo qual derrotá-la – no sentido mais profundo da palavra derrotar – deve constituir a pedra de toque de todo o programa.

No capítulo “O PT e os Valores de um Novo País”, se aponta que a construção do futuro está em disputa. Que há quem queira “se aproveitar da crise para aprofundar as mesmas políticas que levaram o mundo ao beco sem saída e o Brasil ao abismo sombrio em que se encontra”. E que o PT “propõe um novo modelo de desenvolvimento, uma nova forma de gerir a economia, o Estado e a sociedade”.

O problema fundamental desta passagem reside no que se entende por “modelo”. O PT não deve ter por objetivo adotar uma “nova forma de gerir” a economia, o Estado e a sociedade. Nosso objetivo, segundo nossos documentos de fundação e resoluções de vários Congressos, é mudar radicalmente, profundamente, revolucionariamente, a economia, o Estado e a sociedade.

Tanto quanto na passagem anterior, em que o documento inicia afirmando que a crise é sistêmica, mas termina concluindo que o problema é o neoliberalismo; nesta passagem o documento indica que estamos caindo no abismo, mas aponta o dedo para as “políticas”, como se a causa radicasse nas “políticas” e não nas “estruturas”.

Nota-se aqui que, apesar da negativa de “uma volta ao passado”, o documento acentua que “nosso projeto se assenta nos mesmos objetivos básicos e nos mesmos valores que orientaram nossos governos”. Com as ressalvas devidas aos muitos elogios a nossas realizações — cujo conjunto da obra foi positivo — não podemos ignorar a rapidez com que foram desmontadas TODAS as nossas realizações: é a comprovação de que implementamos políticas públicas, mas não promovemos reformas estruturais. Bastou o golpe para que se adotassem novas políticas, revertendo absolutamente tudo que realizamos.

A fim de que esta história não se repita, é preciso avançar além de uma “nova forma de gerir” a economia, o Estado e a sociedade.  Motivo pelo qual a palavra “revolução”, presente no nosso ideário, precisa voltar a fazer parte do nosso vocabulário.

Sugerimos que o documento suprima a fórmula o “Brasil vive hoje uma repetição de um antigo fracasso, o fracasso histórico das nossas oligarquias em construir um país justo, inclusivo e solidário”. A rigor, só haveria fracasso se houvesse esta disposição – o que nunca ocorreu. Na verdade, nossas elites têm sido muito exitosas em alcançar seu objetivo: ganhar muito dinheiro.

Num certo sentido, o documento coincide conosco, pois reconhece que “as circunstâncias internacionais e nacionais são atualmente bastante diferentes das do início deste século, de forma que a construção desse novo país exigirá medidas e políticas mais profundas, inovadoras e radicais”. Na mesma linha, afirma que é “preciso superar de uma vez por todas os vetos ideológicos contra a atuação do Estado, que tem se mostrado o único agente capaz de enfrentar os efeitos depressivos da pandemia”.

Cabe, pois, acrescentar, ser também necessário “superar de uma vez por todas os vetos ideológicos” ao socialismo. Para ser mais específico, não é suficiente defender a atuação do Estado. Fundamental é propor também a expropriação, estatização, nacionalização, de parte da propriedade capitalista.

Não podemos incorrer numa lógica socialdemocrata, segundo a qual o papel do Estado é cobrar impostos e executar políticas públicas. Evidente que somos favoráveis, mas isto não basta. Frente ao gigantismo dos concorrentes internacionais, frente ao nanismo dos capitalistas “produtivos” e à voracidade pantagruélica dos especuladores brasileiros, é preciso colocar sob controle estatal áreas estratégicas da nossa economia, a começar pelo setor financeiro.

Por qual motivo não chamar isso apenas de expansão do capitalismo de Estado? Entre outros motivos porque, nas atuais condições históricas, a coalizão de forças capaz de fazer isso não é “capitalista”.

Agregamos o seguinte argumento: é verdade que “a distribuição de renda e o investimento social são extremamente funcionais ao crescimento econômico e à diversificação produtiva e tecnológica e, por isso, devem se apresentar como motores do desenvolvimento econômico”. Mas isto NÃO é verdade numa sociedade capitalista controlada pelo agronegócio e por mineradoras, por empresas exportadoras e importadoras, por bancos e empresas financeiras, todas associadas a interesses internacionais.

Esta noção ingênua, segundo a qual nossa proposta é compatível e útil para o próprio capitalismo, é uma ficção. Vale para os pequenos e médios capitalistas, não vale para os grandes capitalistas. Aliás, a Operação Lava Jato mostrou de que modo a classe dominante como um todo trata os “colaboracionistas”.

E por falar em classe, o documento fala, com razão, que “classe, gênero e raça são relações estruturantes no capitalismo”. Contudo, faltou ao documento mencionar uma questão chave: a da propriedade dos meios de produção. Sempre haverá alguém a ponderar que, na atual correlação de forças, não é possível tocar na propriedade dos meios de produção. Ocorre que, num debate programático, o ponto relevante é outro: para dar conta dos problemas que pretendemos resolver, é necessário ou não encarar o tema da propriedade dos meios de produção? Se não é preciso, sigamos adiante. Mas se é necessário, então a correlação de forças precisa ser criada.

A nossa opinião é que, para solucionar os problemas a que o “programa de transformação” se propõe, não basta um novo modo de gerir, é preciso alterar algumas das bases estruturais de nossa sociedade.

Notem que, na passagem seguinte, o documento admite isso. Referimo-nos ao capítulo intitulado “Os Alicerces de um Novo País”, onde se fala que “o crescente e intenso aumento da desigualdade de renda e de patrimônio, causado pelo velho modelo neoliberal e a financeirização do capital, vem se constituindo num gravíssimo problema em quase todo o mundo”.

Como, então, resolver o problema da desigualdade de patrimônio?

O documento é praticamente omisso a este respeito. Fato que, a nosso ver, tem relação com a abordagem incorreta a cerca da origem dos nossos problemas.

Vejamos a seguinte frase, para exemplificar: “A crise atual do capitalismo é, fundamentalmente, uma crise causada por um modelo que produz desigualdade e pobreza, limitando o crescimento da economia real e propiciando o surgimento de bolhas especulativas assentadas na financeirização excessiva das atividades econômicas”.

Ou seja, a crise do capitalismo é causada por um “modelo”. Fica implícito que o problema não é o capitalismo em si, mas um “modelo”, o neoliberalismo financeirizado. Portanto, para enfrentar este problema, bastaria enfrentar o modelo, não o próprio capitalismo.

Até que é possível reduzir desigualdades, apenas mexendo no modelo. Mas isto não é sustentável, nem economicamente, nem politicamente. Se queremos uma “transformação” sustentável, então ela deve ser bem mais profunda.

O documento lembra que, nos nossos governos, “ainda havia muito a fazer, mas estávamos no rumo correto”. A questão é que este tipo de raciocínio seria ótimo, se não houvesse inimigos. Como há inimigos, de pouco adianta o raciocínio segundo o qual “devagar se vai ao longe”.

E por falar em inimigos, é inexato dizer que eles apostam “de forma inteiramente equivocada, na desigualdade, na redução dos direitos trabalhistas e sociais e em nossa histórica exclusão, herdada da escravidão, como supostos vetores para estimular os investimentos e o crescimento econômico”.

A questão central do capitalismo não é o investimento, nem é o crescimento; a questão central é o lucro. Desde o final dos anos 1960 há um movimento mundial de queda nas taxas de crescimento. Isto reduz as taxas de lucro, mas os capitalistas compensaram isto com uma brutal ofensiva sobre o trabalho. Portanto, não há “equívoco”, há uma opção deliberada, que não tem por objetivo “estimular investimentos” nem obter “crescimento”. Aqui, novamente, o documento adota uma linguagem “capitalista utópica”, ou seja, parece querer explicar aos capitalistas como eles deveriam fazer para que as coisas acontecessem como está previsto nos manuais de economia.

Concordamos com o documento, quando propõe que devemos fazer, “em linhas gerais, o inverso” do que defendem os neoliberais.

Mas, repetimos, o documento é, digamos, tímido a respeito das medidas que produzam “distribuição do patrimônio”. A rigor, a única proposta neste sentido é a que fala em “garantir o direito à terra, ao território, ao trabalho e à cultura das comunidades quilombolas, dos povos e comunidades tradicionais, do campo, das águas e das florestas”. Entretanto, falta ao nosso programa de transformação propor, por exemplo, a estatização do capital financeiro, que é o núcleo da classe capitalista e o principal concentrador patrimonial.

O documento acerta ao sugerir que é preciso fazer uma “transição ecológica do atual modelo de desenvolvimento, tendo como perspectiva histórica a construção de uma sociedade socialista, democrática e sustentável”. Mas o máximo a que chega é afirmar que “os poderosos interesses econômicos, financeiros e empresariais sobre o setor energético precisam ser regulados e colocados a serviço de uma transição energética justa”.

É conhecido o dito sobre as “empresas grandes demais para quebrar”. Pois então: há interesses que são poderosos demais para serem apenas regulados. Ou são quebrados em empresas menores, ou são colocados sob propriedade pública.

Por outro lado, a “a agricultura familiar e camponesa” só vai conseguir “exercer protagonismo nesse projeto”, se os latifúndios forem submetidos à reforma agrária.  E não há como fazer uma transição ecológica nas cidades, sem que se enfrente o latifúndio urbano.

Portanto, não estamos diante da necessidade de um “pacto”, mas sim de uma revolução patrimonial. Não se trata apenas, como diz o documento no capítulo sobre “Desenvolvimento Econômico e Estado”, de uma “profunda reorganização das relações entre o Estado, o mercado e a sociedade, que possibilite recriar, no contexto da nossa especificidade histórica, mundial e nacional, uma modalidade inovadora e mais inclusiva de Estado de Bem Estar Social”.

Não se trata de mudar as “relações” do mercado com a sociedade e com o Estado, para gerar um Estado de bem-estar. Trata-se, sim, é de mudar a estrutura do mercado, colocando o oligopólio financeiro sob controle público, realizando uma reforma agrária e urbana, criando empresas estatais em várias áreas e estimulando uma ampliação fenomenal no número de pequenas e médias empresas.

Não basta falar, portanto, que “caberá ao Estado planejar, projetar, induzir e estimular a retomada do crescimento e a geração de empregos”.  O Estado tem que voltar a ser proprietário em larga escala.

O documento afirma que “será necessário promover profundas mudanças na estrutura tributária, na estrutura bancária e nas regras fiscais para habilitar o Estado brasileiro a cumprir suas funções”. Concordamos, mas queremos qualificar a profunda mudança que julgamos necessária na “estrutura bancária”. Desde os anos 1980, a classe dominante implementou uma “contra-revolução” na área bancária:  chegou a hora de reverter isso. Esta é a premissa, aliás, para um conjunto de medidas que o documento aponta, de investimento público nas mais variadas áreas.

Ressaltamos concordância com inúmeros objetivos que o documento lista. Todavia, essa lista é irrealizável economicamente e insustentável economicamente, sem libertar o país da ditadura do capital financeiro.

Alguém sempre poderá argumentar que é possível libertar-se do jugo do capital financeiro nos marcos do capitalismo. A tese procede. Entretanto, vista na dinâmica política e histórica, tal tese é uma abstração sem vida. Aliás, é curioso que as vezes se argumente que a medida é inexequível por ser radical demais, outras vezes se argumente que ela na verdade não seria de natureza socialista. Debates terminológicos a parte, nosso argumento é: o oligopólio financeiro privado bloqueia o desenvolvimento que almejamos. Para romper este bloqueio, é preciso romper o oligopólio.

Também estamos de acordo quando o documento afirma que “tudo depende da soberania”. Neste sentido, reiteramos que falta ao documento uma análise da geopolítica mundial, em particular do fenômeno do imperialismo. Tratar de soberania, sem falar explicitamente de enfrentar o imperialismo, é estimular ilusões. O próprio documento elogia nossa política externa, mas parece se esquecer que foi exatamente esta política que gerou reações, contra  as quais não nos preparamos para resistir adequadamente, porque nos faltava clareza sobre o fenômeno do imperialismo.

O documento menciona também que precisamos de uma “política de defesa sólida”.  Resta saber se o que  foi realizado, entre 2003 e 2016, foi o correto? Foi o suficiente? Ou precisaremos de algo muito diferente? Nesse ponto, ressaltamos não se tratar de fazer uma lista de desejos ou de metas, mas sim de estabelecer a premissa: como demonstrado recentemente, um país como o Brasil não será governado pela esquerda impunemente.

O capítulo que trata da “radicalização da democracia” constata que em “todo o mundo, as democracias estão sendo fragilizadas”. E que, no caso do Brasil, esse quadro geral de enfraquecimento das democracias e dos sistemas de representação “foi muito agravado pelo golpe”.

Aqui há, em nossa opinião, um equívoco de abordagem. Embora haja um fenômeno mundial, é imprescindível lembrar que o Brasil sempre teve imensas restrições às liberdades democráticas. Aliás, o próprio documento lembra que “o frágil pacto constitucional de 1988” foi assentado em uma “democratização limitada pela impunidade dos crimes da ditadura, pela estrutura de poder militar incrustada no Estado, pelo latifúndio, pela propriedade privada e pelo conservadorismo”.

Mas se é assim, de que instituições cuidamos, quando se afirma que “mais do que nunca, precisamos defender a democracia e as instituições que a sustentam”?

Na mesma linha, julgamos insuficiente assinalar   que nosso “combate estrutural às causas de uma corrupção histórica e renitente” foi “algumas vezes deturpado por motivos políticos, ideológicos e pelo lawfare, como ficou evidenciado em episódios da Operação Lava Jato”. Cabe reconhecer que nós criamos e reforçamos instrumentos — e uma legislação de cunho punitivista — que hoje se voltam contra nós e viabilizaram a instalação de um verdadeiro Estado de exceção.

Por outro lado, quando se diz que procuramos “incorporar também os pobres e os excluídos à democracia”, é preciso lembrar que tal incorporação não deu conta de alguns temas básicos: o direito à comunicação continuou sequestrado pelo oligopólio privado; o princípio de uma pessoa um voto seguiu distorcido; as forças armadas seguiram com o direito de tutelar a democracia; as polícias seguiram militarizadas; o judiciário manteve-se partidarizado, e assim por diante.

Como explicamos antes, não trataríamos neste texto da segunda parte do documento, intitulada “Plano emergencial em defesa da vida, do emprego, da renda, da democracia e da soberania”.

Para concluir nossa crítica, sugerimos que nosso programa de transformação se organize em torno de 5 pontos (as cinco pontas da estrela):

1/Converter o Brasil e a região latino-americana e caribenha num dos polos do mundo. Não aceitamos o papel de consumidores e fornecedoras de matérias-primas.

2/Garantir o desenvolvimento nacional, colocando o Estado no comando; colocando o oligopólio financeiro privado sob controle público; consolidando a pequena e a média propriedade rurais, como base de nossa soberania alimentar; levando a todo o Brasil energia elétrica, cabeamento ótico, ferrovias e hidrovias; reurbanizando nossas cidades, atendendo 100% das necessidades de saneamento, moradia, transporte e equipamentos públicos (educação, saúde, cultura, esportes e lazer). A produção destes bens públicos, combinada com a ampliação do consumo de bens privados, será o carro-chefe da reindustrialização nacional. No lugar de uma economia organizada em torno do lucro, do lucro de poucos, de um lucro especulativo, destruidor da natureza, social e culturalmente degradante, uma sociedade baseada na igualdade, na riqueza coletiva, na integração ao meio ambiente, no desenvolvimento sustentável, na defesa da humanidade.

3/Edificar um Estado de Bem-Estar Social, financiado através da adoção do imposto progressivo sobre a renda e grandes propriedades, da tributação dos milionários e das grandes heranças, garantindo saúde e educação pública, universal e gratuita; emprego com direitos trabalhistas; salário mínimo valorizado; aposentadoria digna. Políticas especiais voltadas para os direitos das mulheres, dos negros e das negras, setores majoritários da classe trabalhadora, que recebem menos e trabalham mais. Políticas especiais destinadas às populações originárias, aos amplos setores sociais vítimas de histórica exclusão e desigualdade, às regiões submetidas a décadas e séculos de desenvolvimento desigual.

4/Construir um Estado democrático e popular, convocando uma Assembleia Nacional Constituinte e ajustando as contas com a democracia seletiva, o racismo, o patriarcado, a lgbtfobia, o colonialismo, a tutela militar, a ditadura comunicacional, o judiciário partidarizado, o parlamento oligárquico e os governos arbitrários, a polícia militarizada.

5/Um país verdadeiramente soberano, desenvolvido, igualitário e democrático é um país socialista. Uma alternativa sistêmica para uma crise sistêmica.

Assinam esta contribuição inicial, sem prejuízo de correções pontuais ou acréscimos que serão feitos proximamente:

Jandyra Uehara, da direção executiva da CUT e do DNPT

José Genoíno, ex-presidente nacional do PT

Natália Sena, da CEN do PT

Rui Falcão, deputado federal e da CEN do PT

Valter Pomar, do DNPT

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