O nosso “o que fazer?” em 2022 – Lula presidente

Por David Soares de Souza (*) e Gustavo Freire Barbosa (**)

Desde a crise de 2008, a burguesia em todo o mundo vem assumindo uma postura mais radicalizada na luta de classes. Não à toa que, desde então, temos visto ataques brutais aos direitos sociais e às liberdades democráticas. Ao mesmo tempo, a extrema-direita, seja na Europa, Estados Unidos ou Brasil, tem assumido cada vez mais o papel de força antissistema na medida em que parte considerável da esquerda continua presa às gaiolas da institucionalidade, fruto da renúncia a horizontes revolucionários e verdadeiramente emancipatórios.

A maioria da esquerda em quase todo o mundo, desde o fim da URSS, trocou a construção de outra forma de organização social pela defesa de políticas públicas que mitiguem desigualdades. Nesse mesmo contexto, ganharam corpo teorias que, na esteira das teses de que a História teria chegado ao seu fim, renegam o marxismo-leninismo, buscando deslocar o eixo das lutas emancipatórias para longe das relações capital-trabalho e de categorias como classe social, imperialismo, totalidade, etc. Ou seja, os setores mais expressivos da esquerda passaram a ser vistos, cada vez mais, como parte da ordem.

Por aqui, mesmo após o golpe de 2016, as posições de conciliação de classe – e mesmo de ilusão de classe – permaneceram hegemônicas no interior não apenas do PT, mas de toda a esquerda. O rebaixamento programático, que só enxerga horizontes dentro das molduras e formas sociais do modo de produção capitalista, é um sintoma desse processo histórico de domesticação da esquerda, cada vez mais sem dentes e fiadora da democracia burguesa como um fim, não como um meio, caminhando, assim, em sentido contrário ao que propôs Lênin em obras como “O que fazer?” e “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”.  Mesmo depois de todos os acontecimentos do golpe até aqui, a esquerda moderada dobra a aposta neste caminho, ensaiando novamente o seu Dia da Marmota.

Aliás, considerando o que vem acontecendo em outros países da América Latina, com o enfraquecimento do imperialismo e seus prepostos no continente (derrota de Guaidó na Venezuela, derrota dos golpistas na Bolívia e a eminente derrota de Bolsonaro no Brasil) e o fracasso eleitoral de projetos neoliberais (Argentina, Chile, Honduras e, mais recentemente, nas eleições legislativas da Colômbia), é possível que esteja em curso uma forte e nova tentativa de domesticação da esquerda, esvaziando-a de seu conteúdo e potencial revolucionário e lhe retirando ao máximo o caráter de classe. Assim, ocorreria por aqui o que já aconteceu com a socialdemocracia e o trabalhismo na Europa, apoltronados em parlamentos e presos à institucionalidade burguesa.

E nós nisso tudo? A conjuntura que se apresenta torna necessário um balanço dos últimos 20 anos – não apenas por parte da tendência Articulação de Esquerda, mas de toda a esquerda e nação petista. É preciso avaliar como estamos conseguindo cumprir nossa principal tarefa imediata, qual seja, a disputa de rumos do PT. Objetivamente, apesar de, a nosso ver, estarmos com a política correta, podemos aprofundar o debate sobre a tática neste próximo período. Afinal, não apenas as posições moderadas e ultramoderadas se reafirmaram, como ano após ano, as posições contra-hegemônicas perdem força no interior do partido, ainda a principal referência para a classe trabalhadora

Aqui fica, portanto, reafirmado a caráter estratégico do PT enquanto maior instrumento de organização da classe trabalhadora brasileira nas últimas quatro décadas. Por mais declamatórias que sejam, não há alternativas à sua esquerda. Evidência disso é o quadro eleitoral que se apresenta na primeira metade de 2022, reafirmando a histórica polarização do PT contra a direita – ontem tucana, hoje bolsonarista. Tal polarização, notoriamente, corresponde ao reflexo eleitoral de quem são as mais proeminentes forças políticas de cada lado.   A própria burguesia brasileira se encarrega de deixar o PT na centralidade da luta de classes do país.

É por isso que ser de esquerda, para além de uma sólida formação política, é saber onde melhor se posicionar para enfrentar a direita. Escreveu Mao Zedong que estudar o marxismo e ignorar a ação política revolucionária é o mesmo que contemplar uma flecha sem atirá-la ao alvo. E, no nosso caso, existe um desafio adicional: como melhor se posicionar para enfrentar as posições rebaixadas dentro do PT? É certo que parte da resposta está na nossa capacidade de aglutinação na base petista. Não é raro encontrarmos setores que compreendem e concordam com nossa política, mas que não conseguem criar organicidade.

Nesse balanço de duas décadas, é fundamental que tratemos como um problema central a necessidade de maior organicidade. Parafraseando um importante alemão, eleitores e filiados ao PT são importantes. Militantes petistas, no entanto, são imprescindíveis. Em uma análise concreta de uma situação concreta, é preciso garantir que nossas posições passem a crescer no interior do PT realmente existente.

O nosso “O que fazer?”, portanto, permanece atual: combinação de luta social com luta institucional, uma fortalecendo a outra a partir de um programa anti-imperialista, antimonopolista e antilatifúndiário, sempre em defesa das liberdades democráticas e dos direitos sociais. Mas há um “porém”: o sujeito coletivo a ser protagonista deste processo, a classe trabalhadora, encontra-se em profundo refluxo programático e organizativo.

Estamos há quase uma década de derrotas seguidas para os trabalhadores e, hoje, parte muito expressiva de seu contingente encontra dificuldades para os mais básicos aspectos de sobrevivência. Isso explica em parte a força do lulismo, como formulado por André Singer. Milhões de pessoas sem condições objetivas e subjetivas de organização política tendem a transferir para uma liderança a construção de um projeto que as inclua.

Se esta premissa estiver correta, há a necessidade imediata de melhorar novamente as condições de vida da classe trabalhadora, mas desta vez politizando este processo. Concretamente, isto implicará em revogar as armadilhas neoliberais que desde 2016 foram criadas pelo capital, sobretudo a contrarreforma trabalhista, a contrarreforma da previdência e a Emenda Constitucional 95, a emenda do teto de gastos, que só da saúde, segundo o IPEA, tirará R$ 743 bilhões até 2036.

Portanto, o “decifra-me ou te devoro” está justamente em como fazer uma gestão petista melhor que as anteriores considerando a política de alianças que está sendo proposta pelo setor majoritário do partido. Tal política, com a frente ampla e alguém de biografia neoliberal na vice-presidência, não implicaria em concessões que terminam por rebaixar ainda mais o programa de transformação do Brasil, amarrando sua capacidade de incidir na vida das pessoas? A conta não fecha e tensões sociais baterão, todos os dias, à porta de um eventual governo Lula.

Todavia, a vitória eleitoral de Lula gerará enormes expectativas em milhões de pessoas, tendo o potencial de criar o ânimo necessário para que a luta contra o bolsonarismo continue após o pleito. Os comitês populares criados antes das eleições devem continuar mobilizados, disputando desde as bases os rumos do governo e, desta forma, contribuindo para a superação das limitações impostas por arranjos institucionais e contradições oriundas de alianças com setores conservadores. Que a necessidade de mais mudanças que impactem positivamente nas condições de vida de nosso povo tenha um efeito catalizador das transformações sociais que não realizamos nas experiências anteriores. Como já vem afirmando a Articulação de Esquerda, é o momento de politizar, polarizar e mobilizar a partir de uma agenda política e econômica voltada para a democratização da sociedade e a superação das desigualdades, criando, assim, condições para que o projeto socialista ressurja em nossos horizontes.

Do modelo bolivariano ao socialismo chinês, verifica-se a importância de construímos uma tática que passe pela pressão e gestão da esfera institucional sem nos desvincular da necessidade de organização e politização da classe. A esquerda brasileira não tem uma teoria da revolução. Não está claro como a faremos, portanto. Neste momento histórico, porém, temos que trocar o pneu com o carro andando e, talvez, o melhor a ser feito é vincular as melhorias nas condições de vida de nosso povo ao processo de fortalecimento das posições de esquerda, inclusive e sobretudo, no interior do PT. A eleição do companheiro Lula tem o potencial de nos retirar das cordas e colocar a classe trabalhadora em melhores condições de luta.

(*) David Soares de Souza é sociólogo e militante do PT/RN.

(**) Gustavo Freire Barbosa é advogado e militante do PT/RN.

 

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