O dia que o morro descer e não for Carnaval

Por Milton Pomar (*)

Pesquisar na internet costuma resultar em matérias jornalísticas, estatísticas e estudos importantes. Esse é o caso da publicação “World Inequality Report 2022”, do Banco Mundial, provavelmente a mais completa e atualizada no momento sobre a concentração de renda e riqueza no mundo, e respectivamente, a desigualdade, exploração, pobreza, miséria, fome, devastação ambiental, conflitos armados, e… o caos permanente no qual a humanidade se encontra há tanto tempo.

Esse estudo do Banco Mundial é mais interessante ainda por apresentar também a trajetória da distribuição de renda, de 1820 a 2020, no qual fica evidenciado que, nesses 200 anos, a parcela dos 10% nunca deixou de se apropriar de 50% da renda do mundo – tendo atingido 60% de 1900 a 1920 e no ano 2000 –, enquanto a classe média ficou a maior parte do tempo na faixa de 35%-40%.

A metade da população mundial pobre e muito pobre, ah, essa só se ferrou: caiu de 14%, em 1820, para a metade disso em 1910; raquíticos 5% em 1980; e em 2020 retornou aos 7% de 110 anos antes. Ou seja, metade da Humanidade sobrevive hoje em condições muito mais precárias que há 200 anos, apesar de todo o fantástico desenvolvimento econômico, científico, tecnológico, social, político, cultural, etc., etc. ocorrido nesse período.

A leitura desses números impressionantes leva a pensar no agravamento do caos mundial que ocorrerá nos próximos anos, porque, se em 200 anos – e após centenas de guerras –, não se conseguiu melhorar a distribuição mundial de renda e riqueza, não será agora que acontecerá. E certamente não será “diboa” que as mega diferenças existentes serão reduzidas, entre os 50% da população adulta mundial, que recebeu 7% da renda mundial em 2020, e os 10% da população, que ficaram com 55% de toda a renda.

Pior que a desigualdade de renda no mundo é a desigualdade ainda maior da riqueza: esses tais 10% da população mundial são donos de 76% do total, enquanto a metade da população fica com 2% (isso mesmo, dois por cento). Detalhe: há no mundo todo míseros 62 milhões de pessoas com riqueza superior a US$1 milhão, e essa parcela ínfima (0,7%) dos 7,9 bilhões de habitantes em 2022 possui nove afortunados com US$100 bilhões ou mais cada um.

Mantidas as atuais condições de temperatura e pressão, o cenário de concentração de riqueza será bem pior em 2100, se é que isso é realmente possível: as projeções para os 2,6 bilhões de pessoas muito pobres (metade do total mundial de adultos) é de chegarem a 4% da riqueza; a classe média (2,1 bilhões de pessoas, 22% da riqueza total) a 30%; e os 5,2 milhões de hiper-ricos (0,1% da população adulta) saltarem dos atuais 19% para 33% do total.

Seguindo na lógica da “Lei de Murphy”, chega-se ao caso brasileiro: os 10% famosos recebem 59% da renda nacional e possuem 79,8% da riqueza do país, enquanto a metade da população recebe somente 10% da renda e tem 0,4% da riqueza. Como os 50% da população adulta pobre e muito pobre devem ser 60-70% em relação à população total (têm mais crianças que a classe média e os ricos e podres de ricos), significa que dois terços das brasileiras e brasileiros têm acesso apenas a uma poeira de toda a riqueza do país.

Como “nada não é tão ruim que não possa piorar”, no Brasil o 1% da população adulta recebe 26,6% da renda e tem inacreditáveis 48,9% da riqueza nacional. A classe média brasileira (40% da população adulta) é detentora de 20,6% da riqueza e recebe 31,4% da renda.

Traduzindo essas estatísticas em gente, são mais de 50 milhões de pessoas (mais que uma Espanha inteira) pobres e muito pobres. Metade delas ocupa 5 milhões de domicílios em 13 mil “aglomerados subnormais”, segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2019.

Não deixa ser irônico que essa realidade tão absurda (a concentração de renda e riqueza no Brasil é uma das maiores do mundo) seja denunciada em publicação oficial do Banco Mundial, instituição a serviço do sistema causador dessa tragédia no mundo inteiro. No caso brasileiro, as causas principais são combatidas há muito tempo: sistema financeiro predatório, falta de reformas Agrária e Urbana, tributação do consumo maior do que sobre renda e patrimônio, tímido imposto sobre heranças, desindustrialização, assalto dos recursos públicos estaduais e federais via dívidas públicas, e a falta de investimento público em infraestrutura.

Talvez essa situação só seja alterada de verdade quando “o morro descer”, conforme o alerta do samba de Paulo César Pinheiro e Wilson das Neves: “O povo virá de cortiço, alagado e favela / Mostrando a miséria sobre a passarela / Sem a fantasia que sai no jornal / Não tem órgão oficial, nem governo, nem liga / Nem autoridade que compre essa briga / Ninguém sabe a força desse pessoal / Melhor é o poder devolver pra esse povo a alegria / Se não todo mundo vai sambar no dia / Em que o morro descer e não for carnaval”.

(*) Milton Pomar e geógrafo e mestre em Políticas Públicas.

(**) Publicado originalmente no site do PT

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