México e Peru: luta de classes e polarização

Por Daniel Araújo Valença (*)

As eleições deste 6 de junho, ocorridas no México e no Peru, reforçam o processo de alteração na correlação de forças da região – a não ser que ocorra um grande tapetão no país andino.

O México realizou a maior eleição de sua história. Estavam em disputa os 500 assentos da Câmara dos Deputados, legislativos e executivos locais. Foram escolhidos, ao total, candidatos/as para cerca de 20.400 cargos públicos.

O processo eleitoral transcorreu novamente com muita violência: além de assassinatos de vários candidatos, chegou ao limite de ter cabeças humanas despejadas próximas a um local de votação no dia do pleito. A violência no México – assim como na Colômbia – dá indicativos do que poderá ocorrer se o milicianismo se transformar em força majoritária na sociedade brasileira.

As eleições terminaram sendo um plebiscito do governo de Andrés Manuel López Obrador (AMLO), e, com alguns reveses, indicaram consolidação e força do Morena, o partido de AMLO. De 15 governos, o Morena arrastou, de maneira impressionante, 11 deles, avançando em estados anteriormente governados pela direita, bem como situados no norte mais industrializado e de difícil entrada para a esquerda.

Por outro lado, em Ciudad de Mexico, seu bastião, o partido perdeu em 8 das 16 prefeituras. Na Câmara, sua bancada encolheu de 257 para 190, mas manteve larga vantagem frente ao segundo maior partido – o PAN, com 81 cadeiras – o que lhe garante confortável maioria, mas não o suficiente para aprovação de emendas constitucionais.

Se as eleições mexicanas foram marcadas por intensa polarização entre o bloco conformado ao redor de AMLO x a unidade das direitas, as eleições peruanas materializaram de maneira cristalina a polarização que ronda a região. Ante um cenário de crise profunda, a tendência é o enfrentamento entre a extrema direita e a esquerda. Tanto o é que a candidata de centro-esquerda Verónika Mendoza, que estava em empate técnico na liderança do 1° turno, ao buscar deslocar sua candidatura para o centro viu-se esfarelar e parte de sua base rumar para a candidatura de Pedro Castillo, do Peru Libre, partido marxista-leninista-mariateguista.

O primeiro turno contou com 18 candidaturas e terminou com a primeira posição de Castillo, com 18,9%, seguido de Keiko Fujimori, com 13,4%. Seu pai, ao longo da década de 1990, comandou uma ditadura sanguinária e violenta voltada à implementação do neoliberalismo no país e responsável, dentre outros crimes contra a humanidade, pela esterilização forçada de centenas de milhares de mulheres indígenas e pobres.

Apesar da herança que sua candidatura carrega, nada foi suficiente para que capitalistas, mídia privada e amplas parcelas de Lima se envergonhassem de encampar a campanha do fujimorismo, sob as escusas de que o outro lado era o lado do “atraso

do século XX”. Provam que, na luta de classes, princípios jurídicos e morais burgueses são como marionetes: ocos, manipuláveis e vendem ilusões. Ou, dito de outro modo, não há nada mais parecido com um fascista do que um burguês assustado.

É bem verdade que setores da esquerda brasileira – e certamente peruanas também – foram capturados pela ideologia burguesa: ao não defender a criminalização do aborto, o casamento LGBTQIA+, dentre outras pautas que defendemos, seria Castillo um conservador; as candidaturas deste segundo turno estariam em extremos opostos, mas seriam fielmente similares. Tornava-se fácil, portanto, enxergá-lo como um tosco, resultado de mero acaso decorrente de um país em profunda crise política. Ou, nos dizeres da Folha de São Paulo, “a aparente vitória do esquerdista Pedro Castillo para presidente do Peru seleciona uma das duas vertentes do autoritarismo e do obscurantismo que se apresentaram ao eleitorado no segundo turno”.

Perde-se de vista, assim, que sua candidatura é o reflexo de um campesinato indígena – tão idealizado em determinados círculos acadêmicos brasileiros – historicamente superexplorado. Este campesinato indígena, por enquanto, vê (reconhece) a opressão sobre as mulheres na esterilização forçada, mas não (reconhece a mesma opressão) na negação do aborto legal e seguro. Não à toa, na Bolívia, a paridade no legislativo e a ampla maioria do MAS-IPSP, de base camponesa indígena originária, não significou a legalização do aborto. Tampouco interessa que Castillo tenha se pronunciado no sentido de que tais questões devem ser deliberadas na constituinte, ou que, no Brasil, a união de pessoas do mesmo sexo ou o aborto legal e seguro tenham ficado à margem da agenda propositiva de nossos governos. De qualquer maneira, se avanços no campo dos direitos das mulheres e da população LGBTQIA+ dependerão de organização e luta no interior do processo político em curso, a partir da exploração das contradições em seu interior, colocar o governo que se inicia ao lado daqueles que atuam cotidianamente contra os direitos das mulheres e população LGBTQIA+ é reproduzir as posições das burguesias peruanas e brasileiras.

Castillo e o Peru Libre conseguiram o feito de colocar este campesinato indígena novamente no cenário político do país. Mariátegui dizia não haver futuro para o Peru enquanto Lima estivesse de costas para os Andes e para o interior peruano, bem como enquanto operários peruanos não construíssem, ao lado do campesinato indígena, um partido socialista. Para ele, a realidade peruana estava entrecortada pela realidade indígena e, consequentemente, pela questão da terra.

Praticamente um século após, o resultado do segundo turno – com a virada nas urnas já no final da apuração, quando se contabilizavam os votos dos rincões do país – revela que a candidatura conseguiu mobilizar e esperançar um campesinato indígena potente e adormecido, defendendo a nacionalização de riquezas naturais e setores estratégicos, a convocação de uma constituinte e a derrubada do modelo neoliberal.

A vitória de Castillo é um feito das classes trabalhadoras indígenas peruanas e um marco em sua história. Significará, também, uma reviravolta na geopolítica sul-americana, a começar pela articulação de governos de direita e extrema-direita denominada “Grupo

de Lima”, que terá de fechar suas portas ou alterar seu nome. Caso o governo Iván Duque siga sendo derrotado nas ruas da Colômbia, o imperialismo norte-americano terá perdido dois dos seus mais importantes bastiões na região.

O que ocorrerá daqui para frente é difícil prever. Tem-se, de um lado, um órgão eleitoral (Jurado Nacional de Elecciones de Perú) que flerta com o tapetão eleitoral; de outro, um congresso fragmentado e que fará o possível para barganhar ou inviabilizar o novo governo. Ocorrerão tentativas de cooptação – e, em caso de insucesso, de asfixia – por parte das burguesias peruanas e do imperialismo norte-americano. Não permitirão, sem intensa oposição, a superação da realidade peruana.

Muita habilidade política e, principalmente, muita capacidade de mobilizar essas amplas massas vitoriosas serão pressupostos para a manutenção e aprofundamento do processo. E, para tanto, o Peru não pode ser Lima e não haverá alternativa senão com o campesinato indígena.

(*) Daniel Araújo Valença é professor de graduação e mestrado em Direito da UFERSA, coordenador do Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina – Gedic e vice-presidente do PT/RN.


(**) Textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da tendência Articulação de Esquerda ou do Página 13.

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