Lula seria o “Biden brasileiro”?

Por Valter Pomar (*)

O que segue é uma versão revista do “momento Biden” do programa Antivírus de 05/05/2021.

Lula seria o “Biden brasileiro?

Bolsonaro terminará como Trump?

Vamos começar por esta última.

Como Trump terminou?

Trump perdeu por pouco as eleições presidenciais nos EUA.

Trump fez de tudo para tentar reverter na justiça o resultado das eleições.

O “de tudo” incluiu uma tentativa de invasão do Capitólio, ou seja, da sede do parlamento dos EUA

Trump saiu da presidência, está enfrentando processos, mas a extrema direita segue tendo uma força política muito considerável  nos EUA

Queremos que Bolsonaro termine assim?

Num certo sentido, claro que sim.

Queremos que Bolsonaro deixe a presidência.

Queremos que Bolsonaro seja processado por seus crimes, que seja condenado e que seja preso.

Mas num outro sentido, não.

Para começo de conversa, queremos que Bolsonaro saia da presidência agora, não em 2022.

Isso por dois motivos.

O primeiro é que estamos travando uma guerra contra o vírus, mas na presidência da república temos o maior aliado do vírus.

O segundo motivo é que se não tirarmos Bolsonaro agora, correremos o risco dele chegar fortalecido em 2022.

Vamos lembrar que Trump foi derrotado por pouco.

E a derrota (ainda que por pouco) ocorreu entre outros pelos seguintes motivos:

1/a pandemia da Covid 19 estava no auge e isso afetou e muito – negativamente – a popularidade de Trump;

2/houve um levante popular contra Trump, cujo estopim foi a reação contra o brutal assassinato de um cidadão negro por um policial.

Este levante foi essencial para despertar as pessoas e fazer com que muitas pessoas fossem votar contra Trump (lá o voto é facultativo, vamos lembrar, os EUA são um país onde se dificulta que o povo pobre, latino, negro, possa votar).

Pois bem: aqui no Brasil a tendência (frisamos, tendência, pois também pode ser que ocorra outra coisa, como vem alertando Nicolelis) é que a pandemia esteja melhor no final de 2022 do que está agora.

E para entender este “melhor”, há dois fatores a considerar.

O primeiro é o avanço da vacinação, que avança ainda que muito lentamente.

O segundo é a digamos “naturalização” das mortes. Temos 400 mil mortos, podemos chegar a 1 milhão de mortos, mas por um fenômeno de anestesia social este maior número de mortos não necessariamente significará uma maior indignação proporcional.

Além disso (e também por conta disso), até agora não houve um levante de massas contra Bolsonaro.

Tivemos levantes no Chile, no Paraguai, na Bolívia, no Equador.

Estamos tendo um levante na Colômbia.

Tivemos, como já foi dito, um levante até mesmo nos EUA.

Mas aqui no Brasil, até agora nada.

E se isso não ocorrer, se não houver um levante de massas contra este governo de merda, aumentam as chances de Bolsonaro ir ao segundo turno com chances de vitória.

Até porque há alguns sinais de que a economia possa melhorar ano que vem.

Os setores beneficiados pela política econômica e pela situação internacional têm conseguido grandes lucros: setor financeiro, agronegócio, exportadores-importadores…

E, por outro lado, o desemprego está altíssimo, o que facilita a vida dos capitalistas que desejem fazer investimentos na produção, pois vão conseguir pagar salários menores por trabalhos maiores….

Não é que vá acontecer isso, mas pode acontecer isso, até porque tanto a China está crescendo quanto os EUA estão tentando crescer, o que aumenta a demanda pelos produtos primários de países como o Brasil.

E quando está tudo muito mal, até mesmo uma pequena melhora pode ser vendida como uma grande coisa.

Sem falar que Bolsonaro tem a chave do cofre e nada impede que acontece em 2022 o mesmo que em 2020, ou seja, distribuições de recursos para os governos aliados.

Por tudo isso temos insistido, especialmente dentro do PT, que a melhor hora de ir com tudo para cima de Bolsonaro é agora.

Queremos e precisamos derrotar Bolsonaro agora.

Não queremos nem devemos deixar isto para 2022.

Quando falamos isso, sempre tem em algum lugar almas republicanas que ficam incomodadas.

Para estas almas republicanas, queremos lembrar que as decisões do STF confirmam que Lula poderia ter sido candidato em 2018.

Bolsonaro só virou presidente porque houve uma fraude.

E, portanto, não há razão algum para termos o menor respeito pela legitimidade de seu mandato.

E quanto a legalidade, alguém tem dúvida de que Bolsonaro cometeu inúmeros crimes de responsabilidade?

Portanto, nesse sentido queremos fazer com Bolsonaro algo diferente do que foi feito com Trump.

Trump foi derrotado na data marcada para as eleições.

Bolsonaro precisa ser derrotado antes das eleições.

Se possível, com o impeachment.

Se não, pelo menos temos que impor a ele tanto desgaste político que o converta numa nulidade eleitoral.

Desde agora.

Como aconteceu com Temer e com Sarney, que chegaram nas eleições de 2018 e 1989, respectivamente, como anti-Midas políticos.

Por isso vamos ampliar a pressão pelo impeachment.

Não apenas por conta de Bolsonaro ser o maior aliado do vírus.

Não apenas por conta do risco de Bolsonaro se fortalecer eleitoralmente.

Mas também por conta de que, no caso do Brasil, são maiores as chances de êxito de um golpe do tipo tentado por Trump.

Lá fracassou.

Mas aqui Bolsonaro tem mais apoio e o neofascismo tem mais influência nas forças armadas e nas polícias brasileiras, do que Trump tinha.

(Vide o que ocorreu em Jacarezinho!)

Entretanto, vamos supor que o impeachment não ocorra, vamos supor que mais nada ocorra e vamos supor que Bolsonaro continue na presidência até 2022 e dispute a reeleição.

Se isso ocorrer, quem vai derrotar Bolsonaro?

As pesquisas respondem.

Se a eleição fosse hoje, Lula derrotaria Bolsonaro.

E aí vem a questão: como perguntaria o Noel Rosa, “com que roupa” o Lula vai disputar as eleições com Bolsonaro?

Se atentarmos para o próprio Lula, há várias possibilidades.

Nós gostamos, por exemplo dos “trajes” que ele usou quando do discurso em São Bernardo no início de março de 2021: Lula, um petista, uma pessoa de esquerda.

Se fosse nos EUA, aqueles “trajes” estariam mais para Bernie Sanders.

Mas tem gente que não concorda com isso.

Tem gente na esquerda brasileira e até no PT que diz que Lula deveria ser uma espécie de “Biden brasileiro”.

Estou me referindo, entre outros é claro, à opinião do ex-presidente do PT, ex-ministro e ex-governador Tarso Genro.

O que Tarso quis dizer com isso?

Ele mesmo explicou, numa entrevista concedida a UOL.

A lógica de Tarso é o que eu chamo de “possibilismo”. Ela se organiza de trás para frente, do final para  o começo, em torno do que ele Tarso acha que é o “possível” de se conseguir nessa etapa histórica.

O que vamos dizer a seguir é a maneira como vemos o que ele pensa, não necessariamente ele concorda com isto.

Como Tarso acha que qualquer governo pós-Bolsonaro será necessariamente de centro, então o presidente que sucederá Bolsonaro será necessariamente de centro.

Mas como Lula é do PT, não de um partido de centro, então ou bem Lula vai perder as eleições ou bem Lula tem que vestir “roupas” mais adequadas.

E é difícil, apesar do esforço de muita gente, as vezes apesar do esforço que vem fazendo o próprio Lula em conversar com todo mundo, vestir no Lula roupas de centro.

A solução lógica que Tarso encontra é dizer que Lula deve ser candidato “da” esquerda, mas “não de” esquerda.

Agindo assim – segundo Tarso – Lula seria capaz de unir a esquerda, a centro-esquerda e o centro democrático e, portanto, seria capaz de derrotar o cavernícola.

Na cabeça de Tarso, é somente pelo centro e não pela esquerda que se conseguirá derrotar a extrema direita.

E é somente pelo centro e não pela esquerda, que se vai conseguir governar o país logo depois de Bolsonaro.

Talvez por conhecer a mente de pessoas como o Tarso, o João Santana – aquele Patinhas que recebeu dezenas de milhões de reais para fazer campanhas eleitorais petistas e depois fez uma daquelas famosas delações premiadas, incluindo comentários depreciativos sobre muitos petistas, até contra os que pagavam suas contas – talvez por conhecer a mente de gente como o Tarso, João Santana esteja tentando fabricar em seu laboratório um Ciro Gomes fake, de esquerda, para ocupar o lugar vago caso Lula venha a aceitar o figurino proposto por Tarso.

Alguém pode falar que isto é um delírio.

Pode ser.

Mas o fato é que nestes tempos pandêmicos, tem muita gente viajando na maionese.

Por exemplo: esta semana participei de uma reunião em que outro dirigente do Partido – não vou citar o nome – disse textualmente o seguinte: “o plano econômico do Biden é mais avançado que os nossos foram”.

E completou: nós colocamos “os pobres no orçamento” [MAS] “sem a mudança da base de financiamento, a burguesia retoma o governo e regride tudo novamente.”

Não sei se dou risada ou se choro, quando vejo tamanha desinformação.

Segundo nos lembrou uma companheira, a Luiza Dulci, tomando como base informações de um jornal esquerdista chamado The New York Times, a proposta de reforma tributária do Biden é modesta.

Se todas (frizo: todas) as medidas de taxação propostas (frizo: propostas) por Biden foram forem aprovadas, ainda assim o nível de cobrança de impostos estaria abaixo daquele dos anos 1940-1960 e estaria abaixo até mesmo dos anos 1990.

Portanto, além de não fazer o menor sentido a comparação entre “Biden100 diasEUA” e “Lula/Dilma14anosBrasil”; é também necessário dizer que o elogio a Biden, como se ele estivesse fazendo uma revolução ou uma grande reforma estrutural, é baseado numa informação falsa, exagerada.

E por falar em revolução, nós já comentamos e criticamos no Antivírus da semana passada o entusiasmo da companheira Gleisi Hoffman com o Plano Biden.

Segundo Gleisi, num tuite de 28 de abril de 2021, as 23h16: “Biden revolucionando a economia capitalista. Nunca pensei que depois de Franklin Delano Roosevelt, admiraria um presidente americano: crescimento de baixo para cima! É o q precisamos para a América Latina. É o que precisamos para o Brasil!”

Biden, vamos lembrar de novo, foi um dos protagonistas do golpe de Estado contra Dilma, foi um dos garantidores da condenação/prisão/interdição de Lula.

Como é que um petista pode “admirar” alguém assim?

Falta de memória?

Além disso, “crescimento de baixo para cima” nos EUA imperialista, oligopolista, financeirizado, só mesmo em filme de Hollywood.

E a revolução?

Biden estaria mesmo “revolucionando” a economia americana?

Ou, como disse outro importante dirigente petista, Biden seria um “reformista radical”?

A esse respeito, recomendamos ir muito devagar ao poste, como gostava de dizer um antigo secretário geral do PT, que terminou seus dias admirando land rovers.

Não é que Biden não possa tentar dar um cavalo de pau.

Poder, pode, tudo pode.

Mas mesmo que o Plano Biden fosse muito melhor do que é, continuar sendo verdade o seguinte: se ele tiver “êxito”, entendendo por êxito chegar onde seus defensores querem chegar, o resultado será fortalecer os Estados Unidos na sua luta pela hegemonia mundial.

Alguém de esquerda que ache isto bom, está simplesmente mudando de lado, sem se dar conta disto.

Portanto, não vamos confundir alhos com bugalhos.

É totalmente justo que a esquerda aproveite o plano Biden para reafirmar a inconsistência do neoliberalismo e para enfatizar a necessidade (aqui no Brasil) de programas maciços de investimento público, com ênfase na reindustrialização com conteúdo nacional, no meio ambiente, na economia dos cuidados, nos negros e negras, nas mulheres, nos desempregados etc.

E é ótimo ver os neoliberais tupiniquins terem dificuldade de explicar o approach keynesiano das propostas de Biden.

Estes neoliberais tupiniquins, como súditos colonizados que são, são duplamente mais realistas do que o rei e, por isso, acreditam mesmo que as receitas do consenso de Washington seriam capazes de fazer os Estados Unidos superarem sua crise interna e enfrentarem o desafio posto pela China.

Mas a esquerda não pode se limitar a isso, não podemos virar torcida de presidente gringo e não pode perder de vista que o objetivo de Biden é reafirmar a hegemonia dos EUA.

Ou seja – vamos sempre repetir isso – o que é bom para os EUA não é bom para o Brasil.

Acontece que uma parte da esquerda brasileira tem estima baixa e parece ter a necessidade de ser legitimada pelo império.

Quando Tarso diz que Lula deve ser o Biden brasileiro, quando Gleisi se declara cheia de admiração por Biden, quando outro dirigente fala que o plano Biden seria mais avançado do que os nossos governos, quando se apresenta nosso plano de reconstrução e transformação como algo aparentado ao plano Biden, tudo isto revela antes de mais nada uma imensa baixa estima.

Uma colonização mental.

Parte desta colonização mental tem pedigree intelectual: trata-se do fato de que muitos de nossos dirigentes são keynesianos demais e marxistas de menos, capitalistas democráticos demais e socialistas democráticos de menos.

E, por isso mesmo, levam pouco em consideração a história.

Vou dar um exemplo.

Muita gente ressalta a analogia entre o New Deal de FDR e o Plano Biden.

A analogia é possível, para começo de conversa porque o próprio Biden diz estar inspirado no FDR.

E, também, porque a crise de 2008 lembra a crise de 1929, e como depois de 1929 veio o New Deal, esperava-se que depois de 2008 viesse algo parecido.

Mas aí veio Obama, veio Trump, e nada de New Deal.

E ai veio o Biden, faz algo modesto – quando comparado ao que houve no New Deal – e muita gente diz: ufa, até que enfim, um New Deal.

Acontece que há um aspecto desta analogia que é jogada para baixo do pano.

Não foi o New Deal que tirou os Estados Unidos da condição de país enfiado numa crise que começou em 1929, para a condição de potência mundial que ele assumiu em 1945.

Foi a guerra, foi o esforço de guerra, foi graças a segunda guerra que os EUA saíram da crise e se converteram em potência hegemônica mundial.

Por analogia, mesmo que tudo seja como dizem ser e mesmo que tudo saia como planejado, não serão as políticas divulgadas pelo Plano Biden que vão reconstruir a hegemonia mundial dos Estados Unidos, não será o plano Biden que fará os EUA “voltar a liderar”, como Biden, Trump,  Obama et caterva gostam de dizer.

Se isto acontecer será, como antes e aliás como de costume em se falando dos EUA, através da economia de guerra (o que inclui algum nível de guerra propriamente dita).

Não por acaso, Biden ressuscitou em seu recente discurso a afirmação segundo a qual os EUA seriam o “arsenal da democracia”.

Portanto, em se tratando dos EUA, não é possível separar a política externa da política interna, falar das partes supostamente boas do Plano Biden e não falar do conjunto da obra, não é possível falar de economia e não falar de guerra.

Aliás, um dos que alertou para isso foi um, digamos, importante comunista estadounidense chamado… Dwight Eisenhower!!

Este cidadão (que de comunista obviamente não tinha nada) foi presidente dos Estados Unidos e no dia 17 de janeiro de 1961 fez um discurso de fim de mandato.

No Rádio e TV, Eisenhower disse que seu país estava “compelido a criar uma indústria permanente de armamentos” e a “montar uma enorme força militar”.

Mas reclamou – logo ele, que era um militar experiente – da “injustificada influência que o complexo militar-industrial estava crescentemente conquistando.”

Disse que “o novo complexo militar-industrial poderia enfraquecer ou destruir as instituições e princípios que estavam destinados constitucionalmente a proteger.”

Anos depois, outro perigosíssimo “esquerdista” chamado Friedman disse o seguinte: “Os Estados Unidos estiveram em guerra por cerca de 10% de sua existência. Essa estatística só inclui guerras importantes – a Guerra de 1812, a Guerra Mexicano Americana, a Guerra Civil, as duas Guerras Mundiais, a Guerra da Coréia, do Vietnã… Durante o século XX, os EUA estiveram em guerra 15% do tempo. Na segunda metade do século XX, foi 22% o do tempo. E desde o começo do século XXI, em 2001, os EUA estiveram permanentemente em guerra. A guerra é central para a experiência norte-americana, e sua freqüência é cada vez maior. Está incrustada na sua cultura e profundamente enraizada na geopolítica do país.”

Portanto, não vamos nos iludir: na melhor das hipóteses o Plano Biden faz parte de uma operação geopolítica de guerra.

Digo na melhor das hipóteses porque não podemos avaliar o plano pelo que eles dizem acerca do plano.

Nem podemos ter tantas certezas a partir de pouco mais de 100 dias.

Alguém lembra dos elogios que se fez acerca das medidas tomadas por Obama e por Trump? Que se dizia que também afrontavam os dogmas etc.?

Pois é.

Vou dar um exemplo mais recente, retirado de um texto assinado por Marcelo Zero e Aloizio Mercadante, publicado na revista Focus.

No dia 3 de maio, a dupla Zero & Mercadante escreveu  o seguinte: “há no Plano Biden (…) o reconhecimento explícito de que a crise não será superada e os EUA não poderão voltar a ser competitivos, se não reconstituírem sua classe média, distribuírem renda, eliminarem a pobreza, gerarem empregos decentes e sindicalizados, assegurarem direitos trabalhistas e investirem em serviços públicos e no Estado de Bem-Estar”.

Que Biden diga isso, vá lá.

Mas é uma imensa ilusão achar que a crise será superada se os EUA reconstruírem internamente o american way of life.

A crise será superada se os EUA vencerem a guerra hegemônica contra a China.

Claro que para isso a classe dominante estadounidense precisa reconstruir, ainda que parcialmente, a coesão interna.

Uma nação tão fraturada internamente não ganhará nenhuma guerra do lado de fora.

E não vai ser fácil superar a fratura social, entre muitos outros motivos porque os sinais de que pode acontecer uma retomada econômica nos EUA já estão ampliando a migração em direção aquele país, o que aumenta os conflitos políticos, econômicos e sociais.

O que nos ajuda a lembrar, aliás, que o american way of life nunca foi para todos e que, por outro lado, o american way of life foi possível essencialmente graças ao imperialismo, não graças às “políticas sociais”.

Mas o problema principal do plano Biden, do ponto de vista da esquerda, é algo que é apontado explicitamente pelos já citados Mercadante e Zero: o plano Biden não “trata do problema central do capitalismo: a financeirização perversa da economia real”.

Mesmo reconhecendo isso, a dupla Zero & Mercadante chega a dizer que aquilo que o Biden “propõe não é apenas uma pequena reforma (…) É (…) uma mudança de paradigma. Caso seja exitoso, o plano significará o abandono do neoliberalismo radical e hegemônico desde Ronald Reagan e da austeridade fiscal pró-cíclica”.

As palavras “reforma” e “paradigma” possuem tantos significados quanto fregueses.

Mas simplesmente  não consigo entender como é possível falar de “abandono do neoliberalismo radical e hegemônico desde Ronald Reagan”, se o Plano Biden nem ao menos “trata” da “financeirização perversa da economia real”.

Noutra passagem do seu texto, Mercadante e Zero falam que estaríamos diante de uma “revisão completa do chamado ‘modelo neoliberal’ impulsionado pelo ‘Consenso de Washington’ (…). Isso para dizer o mínimo”.

Pergunto de novo: como é que se pode falar isto de um plano que nem ao menos “trata” da “financeirização perversa”??

“Revisão completa” sem tocar no capital monopolista financeiro, sem tocar na “financeirização perversa”?

Veja: Biden pode vir a tentar fazer isso?

Pode. Não é impossível.

Mas o fato é que não fez. E ainda não deu nenhum indício de que pode vir a fazê-lo.

Quero lembrar novamente daquele dirigente que eu citei no início, sem dar o nome.

Segundo ele, “o Plano econômico do Biden é mais avançado que os nossos foram”. Isso porque nós teríamos “colocado os pobres no orçamento”, mas, palavras dele, “sem a mudança da base de financiamento, a burguesia retoma o governo e regride tudo novamente”.

Como já falei, a comparação não faz o menor sentido.

Mas atenção: o que ele fala do Brasil é exatamente o que vai acontecer nos EUA se a financeirização não for “tratada”: os investimentos públicos feitos hoje vão ser capturados amanhã pelo capital monopolista financeiro.

E como o capital monopolista financeiro é o núcleo duro do neoliberalismo e da austeridade, o resultado final tende a ser mais concentração de riqueza.

Concentração de riqueza que, é claro, internamente pode ser atenuada pela ampliação do excedente imperialista.

O que é mais um motivo para preocupação, pois a aliança Pentágono + Wall Street segue forte: cresceu a verba para Defesa no orçamento de Biden, e como sabemos “defesa” nos EUA é ataque aos outros.

Vamos lembrar também que investimento público não é e nunca foi proibido nos EUA neoliberal. Por exemplo, foi feito um imenso investimento público nos últimos anos, com Obama e com Trump, para salvar o capital monopolista financeiro.

Até “estatização” de bancos e indústria já ocorreu depois de 2008. Por essas e outras razões, naquela época também teve gente dizendo que o neoliberalismo tinha morrido.

Acontece que investimento público sem alteração da estrutura de propriedade acaba fortalecendo os de sempre.

Sendo assim considero simplesmente impressionante que se diga – como ouvi também recentemente de um dos líderes de uma importante tendência que no passado já foi trotskista, hoje não sei dizer – que a política de Biden pode ser chamada de “qualquer coisa, menos de neoliberal”.

Veja: enquanto o capital monopolista financeiro e a financeirização estiverem dominando, teremos neoliberalismo.

Claro que o neoliberalismo pode assumir diversas formas. Claro, também, que o capital monopolista financeiro pode adotar outras políticas.

Mas o fato, pelo menos até o momento, é que o capital monopolista financeiro, o complexo industrial militar e as transnacionais não foram tocadas. Nem há sinal de que venham a ser tocadas.

Pode acontecer. Pode. Mas está longe de ser trivial, entre outros motivos porque implicaria em tentar investir produtivamente trilhões de dólares que estão circulando nos mercados financeiros. Sem falar num detalhe: enfraquecer o complexo militar iria contra a natureza dos EUA e contra o padrão dominante no capitalismo daquele país desde o final dos anos 1930.

Mas é compreensível que este tipo de detalhe seja esquecido pelas pessoas que estão passando o pano em Biden.

Afinal, quem chegou a dizer que nos governos Lula e Dilma estaria em curso uma “revolução democrática”, sem atentar para o fato de que em nossos governos não tinha ocorrido nenhum abalo na ditadura do capital financeiro, realmente pode dizer qualquer coisa sobre o Biden.

Isso me leva a outra afirmação, nesse caso uma afirmação que está no texto de Mercadante e Zero.

Vou ler: “assim como o Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil, anunciado pelo PT em setembro do ano passado – e largamente ignorado pela mídia nacional –, o Plano Biden, que causa frisson na imprensa local, tem dimensão emergencial – a da reconstrução – e uma de médio e longo prazo – a da transformação”.

Por um lado, este “assim como” é produto da já citada baixa estima: mídia oligopolista, olhem para nós, falem de nós, somos como os gringos de que vocês falam tão bem.

Déficit de atenção, eu diria.

Por outro lado, o “assim como” é uma comparação totalmente manca, a famosa forçada de barra.

Entre outras diferenças, é bom lembrar que os estímulos fiscais do Plano Biden são feitos em dólar, num pais cuja moeda nacional é o dólar, o que lhes garante uma margem de manobra, uma possibilidade de solução pelo endividamento que o Brasil simplesmente não possui.

Deste fato decorre a necessidade de fazer aqui o que pelo menos até agora o Plano Biden não fez: “tratar” da “financeirização perversa”.

Mas infelizmente, “assim como” o Plano Biden, o plano de reconstrução e transformação não “trata” de liquidar a hegemonia do capital financeiro.

E na ausência disto e diante da dificuldade de fazer reforma tributária, tem muita gente boa e de esquerda achando que a solução seria fazer nossos investimentos dependerem ou 1/das reservas internacionais ou 2/de fazer crescer a dívida pública.

E atenção para o truque: se Biden, sem tocar no capital financeiro, seria pós-neoliberal; então aqui a gente, também sem tocar no capital financeiro, também estaríamos sendo pós-neoliberais.

Logo, para algumas pessoas, tenham ou não consciência disso, o elogio ao Biden faz parte de uma operação mental para rebaixar nossas expectativas acerca de nós mesmos.

Para ir concluindo, ouvi num debate recente acerca do plano Biden que não estamos numa situação revolucionária!

Fiquei pensando o que uma coisa tinha que ver com a outra.

Será que por não estarmos numa situação revolucionária, a gente teria que fazer uma crítica mais suave?

Dizer que focinho de porco é tomada?

Achar que o máximo que podemos conseguir é um neoliberalismo menos desigual?

Demorou, mas finalmente eu entendi o que as pessoas queriam dizer: como não estamos numa situação revolucionária, a crise do capitalismo vai ser resolvida pelo próprio capitalismo, do seu jeito.

E, portanto, o plano Biden seria algo como o máximo de solução boa possível, na atual correlação de forças.

O tal jeito possibilista de pensar, que eu já citei ao falar do Tarso Genro.

Pois bem: peço as pessoas que usam este tipo de argumento, que usem também um pouco de lógica.

Se acham que o plano Biden lembra o New Deal, por favor respondam qual era a situação do mundo nos anos 1930.

E a resposta é: havia de tudo um pouco.

Havia nazifascismo, havia reformas capitalistas, havia socialismo, havia crises revolucionárias e havia guerras.

E o desfecho disso tudo foi uma imensa guerra mundial.

Da qual saiu um mundo com dois pólos: os EUA e a URSS, logo depois fortalecida pela República Popular da China que  hoje dá tanto o que falar.

Esse foi o desfecho daquela crise do capitalismo.

Não foi uma “reforma” pacífica.

Foi uma hecatombe.

50 milhões de mortos, pelo menos.

E a destruição em grande escala da riqueza acumulada.

Prédios, construções, equipamentos.

Destruição do capital acumulado, uma das condições para o capitalismo sair da crise do capitalismo.

E se no desfecho tivemos também socialismo em algumas partes do mundo, isso só foi possível porque uma parte da classe trabalhadora decidiu prosseguir lutando pelo socialismo, mesmo em uma situação muito difícil, muito mais difícil do que a que vivemos hoje.

Neste sentido, o que mais deve nos preocupar nestes elogios desmedidos ao Plano Biden é que eles revelam que uma parte da esquerda acredita que a única saída possível para a crise atual do capitalismo é… capitalista.

Sem perceber que, agindo assim, tornam ainda mais difícil que haja uma saída para a crise, mesmo que seja uma saída capitalista.

Pois não haveria new deal, nem welfare state, se não houvesse a ameaça da revolução socialista.

Misturada com esta discussão, existe outra: há quem diga que a crise que vivemos hoje seria causada não pelo capitalismo, mas pelo neoliberalismo.

Seria uma crise do modelo neoliberal, não do modo de produção capitalista, como se uma coisa pudesse ser totalmente separada da outra, como se o neoliberalismo não fosse o padrão de acumulação capitalista dominante nos dias que correm.

Para quem pensa assim, para quem pensa que a crise é apenas do “modelo” neoliberal, torna-se fácil acreditar que se o capitalismo se livrar do neoliberalismo, a crise será resolvida.

Teríamos nesse caso um capitalismo não neoliberal.

Este raciocínio transforma em única alternativa, aquilo que é uma das possibilidades.

E, além disso, este raciocínio perde de vista por quais motivos o capitalismo, depois da crise dos anos 1970, seguiu caminhos neoliberais.

E os motivos são os seguintes: a concorrência intercapitalista, a concentração de capital, a centralização de capital produzem monopólio, capital financeiro, imperialismo. E sob determinadas condições produzem financeirização, que é a base real do que chamamos de neoliberalismo.

Quem acha que desmontar isso será fácil, peço que reflita sobre o seguinte dado: as guerras do Iraque e do Afeganistão custaram mais caro do que a segunda guerra mundial. E a carruagem seguiu.

Claro que, falando em tese, é possível que o neoliberalismo seja efetivamente abandonado pelos capitalistas, assim como o liberalismo foi abandonado nos anos 1930.

Mas o processo que levou ao abandono do liberalismo nos anos 1930 não foi pacífico. Incluiu uma imensa guerra.

Portanto, repetimos, se as analogias entre Biden e FDR foram verdadeiras e mesmo que o plano Biden dê certo, o que vem por aí é mais crise, não menos crise.

Sendo assim, erram pessoas como os companheiros Mercadante e Zero, que escreveram que o capitalismo poderia ser uma “opção minimamente viável para assegurar a sobrevivência da natureza, da humanidade e das democracias”.

Não é viável, nem minimamente viável.

O capitalismo é a opção dos capitalistas.

Deixemos que eles o defendam.

E vamos propor uma alternativa de verdade.

Não apenas de modelo, mas de modo de produção.

Afinal se queremos mesmo defender a sobrevivência da humanidade e da natureza, então vamos ser coerentes e lutar para “enterrar” a cepa neoliberal e também enterrar o capitalismo como um todo.

E, por tudo isso que foi dito, sigamos mantendo distância total de qualquer coisa que possa recordar o Juraci Magalhães, embaixador brasileiro nos Estados Unidos no governo do ditador Castello Branco e autor da frase lapidar: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.

O Brasil precisa de menos capitalismo, não de mais capitalismo.

O Brasil precisa de menos influência gringa, não de mais influência gringa.

O Brasil precisa de reformas estruturais democráticas e populares, o Brasil precisa acabar com a ditadura do capital financeiro e do agronegócio, o Brasil precisa de socialismo.

E, por tudo isso, Lula não deve ser nem Bernie Sander, nem Bidem.

Deve ser Lula.

E como Lula tem seu lado Minas Gerais, são vários, vamos deixar claro: a crise brasileira exige um Lula radical.

Aquele Lula que no primeiro de maio de 2020 afirmou que o capitalismo estava moribundo.

E não vamos ser nós que vamos dar oxigênio para que o capitalismo possa seguir nos matando.

Fora Bolsonaro.

Lula lá.

(*) Valter Pomar é professor e membro do Diretório Nacional do PT


(**) Textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da tendência Articulação de Esquerda ou do Página 13.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *