Leonardo Boff, o “TODO” e o Tatto

Por Valter Pomar (*)

Leonado Boff

O conhecido teólogo Leonardo Boff disparou dois tweets neste dia 23 de outubro de 2020.

Num deles, diz o seguinte: “Me desculpe o amigo Lula. Penso que em SP, segundo as pesquisas, o PT tem pouca chance. Seria um gesto político generoso e amigo dos pobres e sem-teto apoiar a chapa BOULOS/ERUNDINA. Trata-se de vencer o bolsonarismo e salvar a dignidade política do Brasil. Faça-o e milhões o apoiarão”.

No segundo deles, diz o seguinte: “Estimo que se o PT e Lula em SP apoiarem BOULOS/ERUNDINA ganharão em respectabilidade. Mostrariam de fato que amam mais as causas do povo que o próprio partido. O partido é parte, o povo é o TODO. Deve-se buscar sempre o que é melhor para o Todo. Boulos/Erundina representam o melhor”.

Como dizem nos filmes, vivemos numa democracia. Assim, as pessoas são livres para escolher em quem votar, assim como são livres para escolher em que partido militar. Portanto, como não é filiado ao PT, se Boff tivesse se limitado a dizer que vota em Boulos/Erundina, eu ficaria na minha.

Mas ele deu um passo além: pediu que o PT abra mão de sua candidatura. Portanto, todos os petistas têm o direito de responder, publicamente, a um pedido também público.

Começo pelo começo: não entendi porque Boff inicia sua mensagem pedindo desculpas ao Lula. O candidato é Tatto, não é Lula. A decisão de que Tatto seria candidato foi adotada por uma maioria (escassa) de votos, no PT de São Paulo, e confirmada por uma maioria (expressiva) de votos, no Diretório Nacional do PT. Portanto, é a estas pessoas e instâncias que se deveria pedir algo, mesmo que desculpas fosse. Mas, enfim, cada um com seu jeito de expressar-se, cada qual com sua maneira de entender como deve ser a política.

Depois, Boff diz que “em SP, segundo as pesquisas, o PT tem pouca chance”. Se dependesse de pesquisas, se dependesse de ter pouca chance, talvez o PT não tivesse nem sido criado. Ademais, se acreditarmos nas pesquisas, no dia de hoje o PT tem pouca chance no Brasil inteiro. Devemos por acaso retirar nossas candidaturas no país inteiro? Ou o gesto só vale em São Paulo capital?? E no caso das candidaturas dos demais partidos de esquerda, que também têm pouca chance em todo o Brasil, elas também devem retirar?

Boff agrega que seria “um gesto político generoso e amigo dos pobres e sem-teto apoiar a chapa BOULOS/ERUNDINA”. Pois é: de boas intenções, o inferno está cheio. Se eu fosse apoiador de Boulos, eu pediria exatamente o oposto: que a candidatura Tatto continuasse na disputa, tirando votos principalmente de Russomano. Claro, isto se o objetivo real fosse ir ao segundo turno. Mas se o objetivo fosse derrotar o PT, aí claro, desencadearia uma campanha de pressões, mesmo que o efeito prático fosse não levar ninguém da esquerda ao segundo turno.

Boff afirma, ainda, que “trata-se de vencer o bolsonarismo e salvar a dignidade política do Brasil. Faça-o e milhões o apoiarão”. Se for mesmo verdade o que diz Boff, ou seja, que Lula tem este imenso poder de convocatória em São Paulo capital, a conclusão é que Tatto vai ao segundo turno. Da minha parte, acho que este tipo de premissa pode terminar desastrosamente, levando parte da esquerda a votar em Covas-Dória no segundo turno, em nome de derrotar o bolsonarimso e “salvar a dignidade política“.

No segundo tweet, Boff diz que “se o PT e Lula em SP apoiarem BOULOS/ERUNDINA ganharão em respectabilidade”. Ou seja, a respeitabilidade do PT estaria em abrir mão de sua candidatura, porque, agindo assim, mostraríamos “de fato que amam mais as causas do povo que o próprio partido”. Não é tocante? A gente passa uns quarenta anos lutando, mas para mostrar DE FATO algo, a gente precisaria… abrir mão de ter candidatura numa eleição específica. Definitivamente, o excesso de velas põe fogo na igreja: sou paulista e paulistano, mas a última vez que vi uma argumentação tão exagerada foi quando um intelectual argentino disse que eleger Lenin Moreno presidente do Equador seria equivalente a triunfar na batalha de Stalingrado. Sabemos o que ocorreu depois.

A eleição de São Paulo capital é importante, derrotar Russomano (e também derrotar Covas) é importante, mas as coisas devem ser colocadas no grau. Se o objetivo é derrotar o PT, ok, sigamos na pressão. Mas se o objetivo for realmente ir ao segundo turno e derrotar a direita, então o melhor que se pode fazer é Tatto seguir disputando e tirando votos de Russomano. Claro, exceto para quem professa a crença de que tirando Tatto, seus votos atuais e principalmente os ex-futuros iriam para Boulos. Ou seja, segundo quem pensa assim, Tatto não seria capaz de crescer para si, mas seria capaz de alimentar a cesta de terceiros.

Boff acrescenta, ao final, que “o partido é parte, o povo é o TODO. Deve-se buscar sempre o que é melhor para o Todo. Boulos/Erundina representam o melhor”.

Notem que o argumento inteiro perde sentido e força, se por acaso Boulos e Erundina não representarem “o melhor”. E, no caso em tela, eles representariam “o melhor” porque, segundo as pesquisas, eles teriam melhores chances de ir ao segundo turno. Onde poderiam, sempre segundo Boff, derrotar o bolsonarismo. Não falarei nada contra Boulos e Erundina, mas acho que esta linha de argumento baseado no “voto útil” é sempre desastrosa para quem se considera de esquerda. Aliás, não vejo movimento nenhum, por parte de outros setores da esquerda, em outras cidades do país, de apoiar candidaturas do PT melhor posicionadas. O que supostamente valeria pedir para o PT, não valeria pedir para os demais?

Mas o que mais me assusta no texto de Boff não é apelo pelo voto útil, nem o erro de análise do que significaria – do ponto de vista eleitoral – uma eventual retirada de Tatto. Afinal, vai que estou errado e ele certo. O que me assusta mesmo é a afirmação de que “o partido é parte, o povo é o TODO. Deve-se buscar sempre o que é melhor para o Todo”.

Tremo dos pés à cabeça quando vejo argumentos em nome do “TODO”, assim, com maiúsculas. O povo brasileiro são muitos, não é algo homogêneo. Há classes sociais diferentes, há gêneros, há etnias, há gerações, há interesses regionais etc. Esta ideia de que existe um “todo” superior, ao qual a “parte” deve se subordinar, serviu de argumento – na esquerda e na direita – para posições absolutamente inaceitáveis e que tiveram desfechos desastrosos.

Por fim: eu não apoiei Tatto na disputa interna. Como é público, minha posição sempre foi outra e a defendi em vários espaços, inclusive no Diretório Nacional do PT. Isto posto, hoje o defendo não apenas por obrigação, não apenas por centralismo, não apenas por respeito às instâncias. É tudo isto também, mas eu defendo Tatto principalmente por três outros motivos: primeiro, por que acredito que ele, com uma linha política correta e com engajamento efetivo das lideranças (a começar por Lula e Haddad), ele pode crescer e muito; segundo porque é o crescimento de Tatto, e não sua retirada, que podem levar a esquerda ao segundo turno da capital; terceiro, porque não acredito que seja possível derrotar o bolsonarismo e as outras expressões da classe dominante, enfraquecendo o Partido dos Trabalhadores.

(*) Valter Pomar é professor da UFABC e membro do Diretório Nacional do PT

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