Haiti e Cuba: golpes de novo tipo?

Por Daniel Valença (*)

 Jovenel Moïse  e o momento em que os assassinos entram na casa do presidente identificando-se como agentes do DEA (Drug Enforcement Administration – EUA) .

A América Latina, desde que os Estados Unidos tornaram-se potência regional, foi alvo de diversas modalidades de golpe de Estado: primeiro os militares, recentemente as perseguições político-jurídicas e, agora, Haiti e Cuba demonstram outras vias de desestabilização.

No Haiti, Jovenel Moïse tinha contra si todo tipo de oposição. Forças populares lutavam contra seu governo; oligarquias haitianas também. Ao dissolver o legislativo, governar por decretos e pretender acabar com o Senado, conquistou ainda mais opositores. Tudo começou em 2015, quando  Moïse venceu as eleições em 1° turno, mas estas  foram anuladas após denúncias de fraude. Venceu-as em 2016 e tomou posse em 7/2/2017, motivo pelo qual argumentava ter direito a mandato de 60 meses, ao contrário do legislativo, que teria cumprido seu mandato.  Como se percebe, vários podem ser os interessados e os responsáveis em seu assassinato, que ocorreu em operação que contou com a participação de 28 mercenários, 26 deles colombianos, 2 haitiano/norte-americanos. O serviço de segurança da presidência não resistiu ao ataque, não efetuou disparos. Por outro lado, o chefe da segurança viajou à Colômbia pouco tempo antes.

Dentre os mercenários, um dos colombianos é o Manuel Alberto Grosso Guarín, primo de Rafael Guarín, Conselheiro para Assuntos de Segurança Nacional do presidente da Colômbia Ivan Duque. Sempre bom lembrar, Duque cujo governo comandou o assassinato de 74 manifestantes durante o Paro Nacional, greve geral que estremeceu o país por dois meses.

Outro mercenário colombiano é Francisco Eladio Uribe, autor de uma execução em 2008,  no marco da prática dos “falsos positivos”. “Falsos positivos” foram assassinatos em massa de civis, praticados por militares colombianos, sob o pretexto de estarem combatendo a guerrilheiros. Durante o governo de Álvaro Uribe (2002-2010), padrinho de Duque, as FFAA colombianas eram recompensadas com dinheiro, promoções, medalhas, férias e vantagens quando assassinavam guerrilheiros. Hoje, se sabe que mais de cinco mil civis foram assassinados em eventos considerados “falsos positivos”.

Mas, quem recrutava a tais mercenários?

Em entrevista à W Radio, da Colômbia, Yuli Uribe, esposa de Francisco Eladio Uribe, disse que seu marido foi contratado por uma empresa de nome “CTU” a US$ 2.700 por mês para cuidar da segurança de famílias de xeques.

A Counter Terrorist Unit – CTU é uma empresa de segurança privada situada em Miami, com registro de 2019 e que tem como presidente Antonio Intriago, um venezuelano anti-chavista. A CTU diz em suas redes sociais ofertar segurança privada em todo o mundo. Já Intriago se reuniu com Ivan Duque em Miami, em janeiro de 2018, durante a campanha presidencial deste. Ele também é sócio de Antonio Esquivel, da “Junta Patriótica Cubana”, responsável por uma série de atentados contra Fidel Castro.

Se a Colômbia entrou com o aporte de mercenários e os EUA com a logística, as elites empresariais e políticas haitianas seriam as responsáveis pela encomenda do crime. Um deles foi o médico Christian Emmanuel Sanon, que, adivinhem, também tem moradia em Miami, e foi preso pela polícia haitiana. Ele é apontado pelo chefe da Polícia Nacional do Haiti, Léon Charles, como um dos autores intelectuais e financiadores do assassinato.

Outro ator importante do crime foi a República Dominicana. Por ela, os mercenários entraram no Haiti, já que tal país não exige visto para ingresso de colombianos. O papel da República Dominicana, contudo, é incerto; o que se sabe é que, horas antes do crime,  anunciou-se o fechamento de suas fronteiras e proibição de trânsito de colombianos.

O caso do Haiti, contudo, não pode ser visto como isolado. Ao contrário, deve-se lembrar que em maio de 2019 outra empresa de “segurança privada” com sede em Miami, a Silvercorp, dirigida por Jordan Goudreau, foi contratada por Juan Guaidó para invadir a Venezuela e matar Nicolás Maduro.

À época, as forças armadas bolivarianas e pescadores da comunidade de Chuao interceptaram mais de 60 mercenários, em uma das várias tentativas de golpe de Estado das oligarquias locais/imperialismo contra a Venezuela (golpe de 2002, drones em 2017, dentre outros eventos).

Mas, além de Haiti e Venezuela, a Bolívia por pouco também não passou por uma invasão mercenária. Matéria do The Intercept de junho de 2021 revelou gravações em que Luis Fernando Lopes, ministro da defesa da ditadura de Jeanine Áñez, negociou a contratação de mercenários para impedir a posse do candidato vitorioso do MAS-IPSP, Luis Arce, eleito com 55% dos votos ainda no primeiro turno.

Segundo a matéria, ele negociou com Joe Pereira, ex-administrador civil do Exército dos Estados Unidos, que lhe ofertou o envio de 10 mil homens ou de 350 LEPs (Law Enforcement Professionals), para guiar a polícia. Os aviões sairiam desde Miami e Pereira teria insistido que o plano não tinha o conhecimento por parte do governo dos EUA. Mas, por motivos incertos – houve divergências entre Lopes e Arturo  Murillo, outro ministro da golpista; receio do isolamento internacional, etc. – o plano nunca saiu do papel.  Ambos fugiram do país pelo Brasil; Lopes talvez ainda esteja escondido por estas terras; Murillo fugiu para os EUA, mas está preso por lavagem de dinheiro.

Os três episódios demonstram que as burguesias latino-americanas não tentam manter qualquer verniz democrático,  e ainda contam com a tutela norte-americana. Os episódios revelam que entre 2019 e 2021 a tática de contratação de mercenários para atacar governos latino-americanos mostrou-se como principal método de tentativa de golpe de Estado na região. A Colômbia disponibiliza mercenários advindos de seu exército.  Os EUA contribuem com a logística. E às elites locais cabe o pagamento pelos crimes.

De tudo isto, uma pergunta continua sem resposta: afinal, quais Estados financiam o terrorismo e devem sofrer embargos econômicos?

Sem dúvidas, não deve ser a Ilha socialista, que, neste dia 11 de julho, teve atos e mobilizações que demonstram a tentativa de golpe de Estado em padrão semelhante ao das primaveras coloridas.

As manifestações, é verdade, não se trataram apenas de “ações de golpistas”. Concorreram golpistas – turbinados pelo investimento dos Estados Unidos em desestabilização;  só na gestão Biden já foram 20 milhões de dólares –, mas também o embargo econômico do imperialismo norte-americano, a crise sanitária – em um país marcado pela saúde coletiva e preventiva – e o descontentamento com as condições de vida em tempos de Coronavírus.

Contudo, não é verdade que a Ilha socialista viva uma crise humanitária devido à pandemia.

Cuba tem 1537 mortes por Covid-19. Se revisarmos rapidamente outros países latino-americanos veremos que o Peru tem 187 mil mortes; a Colômbia 112 mil; o Chile, o antigo exemplo neoliberal, 33 mil. Indo além, notamos que Cuba exibe números melhores inclusive do que países nórdicos, como a Suécia, com 14 mil.

Em toda a América Latina, Cuba é o único com expectativa de superação da pandemia, pois desenvolve cinco vacinas – para todas as faixas de sua população, inclusive crianças, sendo que a Abdala apresenta eficácia para casos sintomáticos de mais de 90%.

Então, se é verdade que a COVID-19 tem revoltado e assustado a população, também o é porque, em Cuba, as pessoas não morrem a esmo em virtude de ausência do acesso à saúde ou devido à violência urbana, como no Brasil e na maioria dos países da região. 43 vítimas em apenas um dia choca o país, ao contrário daqueles que normalizam a morte das mais de quatro mil pessoas em apenas um dia.

Por outro lado, as condições econômicas e sociais em Cuba são duríssimas.

O bloqueio econômico teve 243 novas restrições durante a gestão Trump, que foram mantidas pela gestão Biden. Falar em ajuda humanitária é de um cinismo sem igual, primeiro porque o corredor humanitário proposto pelos EUA é alternativa em países sob guerra, segundo porque o próprio bloqueio impede a solidariedade internacional. Dentre inúmeros exemplos, o chinês Jack Ma buscou doar kits de testes e respiradores a Cuba – como o fez com vários outros países – e a transportadora, estadunidense, cancelou a doação, por causa da Lei Helms-Burton.

Além do bloqueio, Cuba também tenta superar a moeda dupla – CUC e peso cubano – unificando a política monetária ao redor do peso cubano, bem como a estatização da economia em setores não essenciais. A transição tem sido difícil e, em paralelo, a pandemia afeta diretamente a maior fonte de ingressos da Ilha, o turismo. Ao somarmos todos esses elementos, a situação se torna dramática e é compreensível a insatisfação inclusive daqueles e daquelas que defendem a revolução.

O que houve dia 11, portanto, foi o acúmulo dessa série de questões, com uma intervenção externa buscando maximizá-las. O analista de redes Julián Macías demonstrou como foram dois milhões de twitters com a hashtags SOS CUBA, puxados, em grande parte, por 1500 contas externas ao país criadas na semana dos protestos.

Se bem é verdade que havia algum nível de mobilização contrarrevolucionária que garantiu os atos de rua, também o é que se buscou criar um clima de mobilização popular massiva que viesse a permitir algum nível de intervenção internacional.

Mas o presidente cubano, Miguel Díaz-Canel, tomou decisão dura de pronto: convocou os revolucionários a saírem às ruas em defesa da Revolução, mostrando que ela conta com o apoio não apenas das forças armadas, mas da ampla maioria da população. Se aos liberais chocou a convocação de civis para a defesa da Revolução, ainda no domingo as ruas estavam tomadas pelos revolucionários e os protestos foram estancados. Ao contrário de Chile e Colômbia, em que o Estado tirou a visão de 460 manifestantes e matou 74, respectivamente, em Cuba foi a população mobilizada que interrompeu a tentativa de desestabilização.

Numa sociedade socialista, as forças armadas não devem existir contra o povo; ao contrário, este se movimenta quando há riscos a sua soberania e autodeterminação, como décadas atrás na invasão mercenária na Baía dos Porcos.

Seja mediante o ataque de mercenários, seja através da desestabilização política e econômica, os eventos de julho provam que não há outro caminho para uma América Latina livre senão a luta socialista.

Toda solidariedade ao povo do Haiti! Abaixo o bloqueio, viva a Cuba socialista!

(*) Daniel Araújo Valença é professor de graduação e mestrado em Direito da UFERSA, coordenador do Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC) e Vice-presidente do PT/RN.

 

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