Garantir a autonomia universitária pela construção de uma universidade democrática e popular

por Ana Flávia (*), Lucas Reinehr (**) e Roberto Nery (***)

Como presente de Natal, Bolsonaro enviou um projeto de lei que destina recursos públicos para os bancos que precisam ser “socorridos”, enquanto o patamar de miséria e de pobreza da classe trabalhadora atinge níveis elevados comparados aos anos anteriores. Como se isto não bastasse, o presidente – que elegeu a educação pública como uma das suas principais inimigas – sancionou a Medida Provisória nº 914/2019[¹], que significa um ataque frontal à já combalida autonomia universitária, ao instituir e reafirmar regras para a escolha dos dirigentes das universidades federais, institutos federais e do Colégio Pedro II.

A Medida Provisória, um instrumento adotado pelo presidente da República com força de lei para ser utilizado em casos de urgência e relevância, determina como obrigatória a realização de consulta à comunidade acadêmica para formação das listas tríplices para o cargo de reitor(a) por meio de votação direta, preferencialmente eletrônica. Os pesos foram estabelecidos como padrão, sendo 70% no voto docente, 15% no dos servidores técnico-administrativos e 15% para o voto discente. Outro ponto é que os Institutos Federais serão submetidos a essa regra, que até então não encaminhavam lista tríplice para a escolha de seus reitores e tinham como garantia a paridade entre o voto das referidas categorias da universidade. 

Além disso, a MP acaba com a eleição para as diretorias das unidades acadêmicas, determinando que os mesmos sejam escolhidos pelo reitorado sem a consulta da comunidade acadêmica. Já os campi serão dirigidos por diretoras(es)-gerais, ignorando a diversidade das estruturas internas das instituições, nomeados pelo reitor(a) também sem consulta. Por fim, estabelece a possibilidade do Presidente da República nomear reitoras(es) pro tempore nas hipóteses de “I – na vacância simultânea dos cargos de reitor e vice-reitor; e II – na impossibilidade de homologação do resultado da votação em razão de irregularidades verificadas no processo de consulta”, o que pode levar a intervenções como a já em curso na UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados/MS) e no CEFET-RJ, podendo ampliar bastante com a previsão desse dispositivo.

Cabe-nos questionar: qual a urgência que explica a instituição desta medida provisória, principalmente com a recente eleição, no IFRN, de um reitor petista e com a discussão no CONSUNI da UFERSA que objetivava burlar as normas outrora em vigência e os golpes em curso do atual desgoverno nas universidades? Só há um único motivo: instituir, a passos largos, uma estrutura mais forte e coesa para garantir o poder hegemônico da classe dominante, não permitindo quaisquer manifestações mínimas nessas instituições de ensino que apontem para um projeto democrático e popular de universidade. Essa medida aponta diretamente para a concretização de um projeto repressor das manifestações do movimento estudantil e sindical dentro das universidades e instituições, aproximando-as cada vez mais dos interesses do capital financeiro.  

Para diluir quaisquer mecanismos de resistência e enfrentamento ao projeto neoliberal por parte das instituições federais de ensino, Bolsonaro ataca a democracia. Através da consolidação de um modelo que privilegia apenas uma categoria na escolha dos dirigentes, a medida enfraquece o peso da categoria estudantil e dos técnicos. Além disso, vale lembrar que a MP não surge de forma isolada, mas vem em conjunto com uma série de retrocessos que já vêm sendo pautados e implementados desde o ano passado, como os cortes no PNAES, o programa Future-se, o contingenciamento de investimentos para a educação e mais uma série de políticas nefastas. O pano de fundo disso tudo é bastante nítido: dar lugar a um modelo de universidade acrítico, entreguista e voltado para as necessidades do grande capital. E para isso, vale atacar a democracia, enfraquecer as entidades representativas e sucatear a educação pública.

A autonomia universitária, vale lembrar, foi uma conquista do movimento estudantil, estando nas nossas reivindicações desde o Manifesto de Córdoba. Ao contrário do que alguns setores consideravam, a saber, a autonomia universitária como sinônimo de uma concepção de universidade responsável única e exclusivamente pelo seu financiamento e gerenciamento, nós – da Juventude da Articulação de Esquerda – defendíamos, em todo os congressos da União Nacional dos Estudantes, o financiamento público das universidades como um modo de garantir estabilidade à instituição, sem ferir a sua autonomia a partir da garantia de instrumentos como orçamentos participativos para decidir o fim da aplicação desses recursos. Aliado a isto, sempre reafirmamos a necessidade intransigente de realizarmos uma Reforma Universitária, que alterasse a concepção de universidade, passando por uma mudança que valorizasse os saberes e demandas populares, colocando às instituições a serviço da classe trabalhadora.

Mais um erro dos nossos governos e das entidades históricas de representação da classe trabalhadora no movimento estudantil: não ter colocado na ordem do dia a Reforma Universitária como bandeira fundamental para a conquista de uma universidade pública, democrática e popular. Erramos ao não ter instituído o mínimo (lembramo-lhes que o que defendíamos era o voto universal e que contemplasse os demais membros da comunidade) nas universidades federais: a paridade do voto entre estudantes, técnicos-administrativos e docentes para a escolha dos nossos dirigentes. Erramos ao não colocar – repito, o mínimo – como vinculante o resultado da chamada “consulta” à nomeação pelo presidente da República, mesmo sabendo das suas limitações quando não acompanhada de uma reforma universitária aos moldes propostos por nós. Se tivéssemos comprado boas brigas nos nossos governos, certamente não estaríamos vendo o desmanchar de políticas tão frágeis como as que proporcionamos. Talvez se tivéssemos atiçado as classes sociais, estivéssemos em outro patamar de luta contra o capital, fascismo e o obscurantismo. 

Entretanto, não nos cabe só refletir sobre o que não ocorreu. Nos cabe refletir que se faz urgente uma reorientação estratégica por parte do PT e por parte das entidades históricas de representação da classe trabalhadora. É preciso imprimir uma derrota ao atual governo e, para isso, nossas entidades representativas devem centrar seus esforços na disputa de concepção e mobilização contínua dos estudantes, da juventude e de toda a classe trabalhadora.

A União Nacional dos Estudantes, articulada em conjunto com toda a rede do movimento estudantil, deve ser a grande precursora desse processo em defesa da democracia dentro das universidades. A pauta da reforma universitária entrou de forma definitiva na agenda da UNE a partir da década de 60, com a realização do 1º Seminário Latino-Americano de Reforma e Democratização do Ensino Superior, realizado na Bahia. Em 62, após o 2º Seminário, em Curitiba, as resoluções determinadas na “Carta do Paraná”, propunham uma greve geral a partir do dia 1º de junho ,caso não fossem atendidas as reivindicações por um terço nos votos nos órgãos das universidades e representações nos conselhos federais e estaduais.

Arthur Proener, em seu livro “O Poder Jovem”[²], conta que “esgotado o prazo, sem que obtivesse o terço de participação, a UNE decretou uma greve geral nacional, de amplitude inusitada até então, pois chegou, a certa altura, a paralisar a maior parte das 40 universidades brasileiras da época (23 federais, 14 particulares e três estaduais), além de ser pontilhada de grandes manifestações públicas, entre elas a ocupação, pelos universitários do Rio, do Ministério da Educação, de onde só foram desalojados com a intervenção da Polícia do Exército.” Durante da grave, a UNE rodou o país realizando seminários e debates, em uma grande mobilização conhecida como “UNE Volante”, junto do Centro Popular de Cultura da UNE, numa grande caravana. Em algumas universidades a reivindicação foi alcançada, como na UFPR (Universidade Federal do Paraná) e na UFG (Universidade Federal de Goiás), mas depois de três meses a greve foi suspensa, sem alcançar seus objetivos. Porém, não pode ser considerado um fracasso, visto a conscientização que realizou dentre a base estudantil e é, até hoje, a maior greve estudantil da história do nosso país. 

Queremos, novamente, mobilizações massivas por todo o Brasil que defendam a democracia nas universidades e em todos os âmbitos da sociedade brasileira. Compreendendo as diferenças históricas da década de 60 para os tempos que vivemos, é preciso que a União Nacional dos Estudantes, juntamente com suas entidades gerais e de base, elabore uma estratégia de enfrentamento a um dos governos mais nefastos que já tivemos. Para isso, é preciso dar consequência às nossas reinvindicações e pautá-las de forma concreta, relacionando com o cotidiano dos estudantes brasileiros e com os diversos ataques à classe trabalhadora. O ataque à democracia e à autonomia universitária diz respeito não somente à forma de escolha dos dirigentes das nossas instituições, mas também está relacionado ao modelo de universidade e a quem deve acessá-la. Dialogar com os estudantes da classe trabalhadora, estar presente nas universidades para a realização de fóruns e seminários, olhar atentamente às universidades interioranas e ser referência para os estudantes de todo o Brasil é o que a UNE deve fazer para reforçar sua legitimidade e garantir as vitórias que necessitamos contra o governo Bolsonaro. A luta em defesa da autonomia universitária deve estar alinhada à luta por um modelo democrático e popular de universidade, onde a função social das instituições de ensino superior seja cumprida e as universidades e IFs sejam importantes ferramentas da transformação social, na busca por um Brasil soberano e livre de desigualdades.

[¹]http://planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Mpv/mpv914.htm
[²]https://www.academia.edu/15102046/O_poder_Jovem

 

(* ) Ana Flávia é estudante de Direito da UFERSA e representante discente no Conselho Superior desta universidade

(**) Lucas Reinehr é diretor da UNE e militante da JPT

(***) Roberto Nery é militante petista, graduando em Ciências do Estado na UFMG e está na Secretaria Estadual da JPT MG

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