Fernando Haddad e a reinterpretação da história

Por Valter Pomar (*)

Primeiro o dever, depois o prazer.

Passei parte da tarde preparando a aula inaugural de um curso da Escola Latinoamericana de História e Política.

O curso chama-se “Trotsky e Stalin: polêmicas sobre a luta pelo socialismo na URSS e no mundo”.

E sabe como é, uma ideia puxa a outra.

Em Petrogrado/São Petersburgo, achei um livro (em russo e caro demais) genial, com dezenas de fotografias da época soviética, devidamente retocadas, apagando progressivamente personagens que caíam em desgraça.

Havia fotos que começavam com 8 personagens e terminavam com um personagem só. Ou com outros personagens, que nem estavam lá originalmente. E olha que não havia digitalização na época…

Mas quem acha que esta é uma prática soviética, nanananinha: na sede do Partido Socialdemocrata Alemão, tive o desprazer de ver uma galeria de fotografias devidamente editada, quase como se a história do Partido tivesse começado com Friedrich Ebert.

Aliás, a Fundação de mesmo nome controla uma das casas onde Karl Marx morou, em Treveris/Trier. E lá, no meio de uma — de resto maravilhosa — exposição sobre a vida do Mouro, tem uma cronologia da revolução alemã de 1918-1919 que é de chorar, tão grotesca é a reinterpretação dos fatos.

Tudo isto para dizer que o artigo publicado no dia 22 de agosto de 2020, pela Folha de S. Paulo, intitulado “Imunidade seletiva” e assinado pelo companheiro Fernando Haddad, é um ótimo exemplo de reinterpretação politicamente retrospectiva da história. Ou simplesmente aquilo que noutra época ortográfica, a gente chamaria de estória.

Que Haddad queira que o PT seja de centro-esquerda, é direito dele. Cada um com sua mania.

Que existem setores do PT que passaram os últimos 20 anos defendendo que o PT fosse de centro-esquerda, seria uma afirmação correta e, se bobear, autobiográfica.

Mas dizer que, nas últimas duas décadas, o PT estava “pela centro-esquerda”, isto é pura e simplesmente forçar a mão.

Não apenas como petista, mas como historiador, sou obrigado a protestar. As palavras não são arbitrárias. Duas décadas cobrem um período que começa em 2000 e termina em 2020. Se o PT estava “pela centro-esquerda” ao longo destes anos, quem é que estava “pela esquerda” na política brasileira, neste mesmo período??

Mas a confusão não para por aí. Haddad acerta ao dizer que o PSDB esteve na centro-direita estes 20 anos. Mas, talvez para não chocar os amigos que tem do lado de lá, Haddad afirma que o PSDB seria expressão do “liberalismo” mas também “representante da modernidade”.

E, pronto, estaria garantida a simetria e o paralelismo com o PT, que também seria “representante da modernidade”.

Como ex-aluno da USP, sei que muitos lá gostariam que o PT e o PSDB se aliassem; assim a “modernidade” (hehe, eita palavrinha que admite tudo quanto é significado) estaria garantida, sem as tais alianças com o “passado”.

Bom, novamente este é um direito que assiste ao Haddad, se é que é isso que ele pensa, ou pensou algum dia. Entretanto, não consigo entender de onde ele tira a classificação de que o PT seria expressão do “trabalhismo”.

Será que o manual da Folha colocou as palavras malditas – socialismo, esquerda – no index?

Pois estamos no Brasil, não na Inglaterra, e aqui a expressão “trabalhismo” tem um significado muito específico e não há criatividade literária, ou licença poética, que permita atribuir a secas este termo ao PT.

Dizer que PT e PSDB expressavam o socialismo e o liberalismo, ou a esquerda e o liberalismo, vá lá. Mas dizer que expressavam o trabalhismo e liberalismo, é o ó do borogodó, como acho que diria minha vó materna, que aliás votou no Lula, mas ficou furiosa com a reforma da previdência.

Mas não termina aí a novela.

Haddad considera que PT e PSDB se aliaram “ao passado”.

Buenas, não vou ser eu quem vai defender a política de alianças adotada pelo PT, a partir da eleição de José Dirceu a presidente do Partido.

“Mans”… confesso que nunca chegaria a fazer afirmação tão, digamos, ousada quanto a feita por Haddad, pois cá entre nós há algumas diferenças importantes, de significado político ou de efeitos práticos, entre as alianças feitas pelo PT e pelo PSDB, quando ambos estiveram no governo federal.

O chato é que toda esta invenção “histórica” tem como objetivo preparar a seguinte conclusão: “o centrão se transformou no núcleo duro do governo e, a julgar pelos últimos movimentos, pode liderar setores que, no passado recente, governaram o País”. Ou seja, o centrão lideraria os tucanos (e a parte mais tucana do MDB, a de Temer). E diz que tudo isto pode ser parte da “escalada do autoritarismo no Brasil”. Conclusão que até pode ser interessante, ainda que me pareça meio imprecisa, mas que certamente poderia prescindir daquela introito “estoricamente” exótico que comentei antes.

Seja como for, valeu Haddad ter escrito este texto na Folha, pois me alegra terminar o domingão lendo o cidadão em quem votei para presidente da República afirmando, com todas as letras, que a LavaJato “sempre contou com duas vertentes: a de Sérgio Moro, que tinha a finalidade de destruir uma força política, o PT (…) e a de Rodrigo Janot (…) que queria implodir todo o sistema político-partidário”.

Melhor esta história do que aquela outra, de 2018, segundo a qual “em geral Sérgio Moro fez um bom trabalho”, em geral “ajudou o país”. Como se vê, mesmo de jeito atrapalhado, a história também avança.

(*) Valter Pomar é professor da UFABC e membro do Diretório Nacional do PT

ps 1. um leitor me perguntou e eu respondo: sim, seria correto dizer que o PT, um partido de esquerda, aplicou em vários momentos uma política de aliança com partidos de centro e até de direita, ou seja, adotou aquilo que nos anos 1990 era criticado como “política de centro esquerda”. Ou, como gostava de acreditar o professor Marco Aurélio Garcia, uma política de esquerda-centro. Mas neste caso, estaríamos diante de outro tipo de raciocínio, cujo propósito seria neste caso descrever e criticar a realidade, não nos converter em um partido “trabalhista”.

ps 2. outro leitor me perguntou e eu respondo: em tudo que é humano, paralelos sempre podem ser encontrados. Eu sugiro um: num partido necessitado de Jeremy Corbins, tem gente emulando Tony Blair.

 

SEGUE O TEXTO COMENTADO

Imunidade seletiva

Em duas décadas de disputa por diferentes projetos de futuro, tanto PT, pela centro-esquerda, como PSDB, pela centro-direita, tiveram que se aliar ao passado. Representantes da modernidade, trabalhismo, de um lado, e liberalismo, de outro, se alternariam no poder, enquanto negociavam sustentação com o parasitismo partidário, tido como remanescente do atraso que se superaria aos poucos.

Nos últimos anos, o passado se impôs e converteu o atraso em nova vanguarda. A história recente não deixa de ser também a história dessa viravolta em que o centrão se transformou no núcleo duro do governo e, a julgar pelos últimos movimentos, pode liderar setores que, no passado recente, governaram o País.

Refiro-me à aproximação de Michel Temer e Aécio Neves ao bolsonarismo. Temer, que se autointitula conselheiro de Bolsonaro e que trata o governo deste como continuação do seu, chefiou a seu convite missão de solidariedade ao Líbano, depois da tragédia que destruiu Beirute. Texto do jornal O Globo relata que “deputados do PSDB ligados a Aécio tentam aderir à base do governo”.

Sabemos o que significou o Joesley Day na vida política destes dois personagens. Aécio queria novas eleições, após refutar o resultado eleitoral de 2014. Temer trabalhou pelo impeachment que, inclusive, poderia contar com o PSDB num arranjo parlamentarista. Temer levou a melhor, até que Joesley implodiu seu governo presidencialista. Agora, sabe-se que o advogado de Flávio Bolsonaro, Frederick Wassef, que “cuidou” de Fabrício Queiroz por um ano, recebeu recentemente da JBS (do mesmo Joesley) a bagatela de R$ 9 milhões, segundo investigação do MP-RJ reportada pela revista Crusoé.

A Lava Jato sempre contou com duas vertentes: a de Sérgio Moro, que tinha a finalidade de destruir uma força política, o PT, e poupava de melindres as demais (revejam as fotos de Moro com Aécio e Temer); e a de Rodrigo Janot, o artífice do Joesley Day, que queria implodir todo o sistema político-partidário. A primeira partia do pressuposto de que no PT só tinha joio; a segunda, de que em todo canto o trigo era tão pouco que não compensava poupar.

Ambas as estratégias favoreceram a ascensão do bolsonarismo, mas só a primeira interessa agora a Bolsonaro, desde que ela esteja sob seu controle, ou seja, centralizada numa PGR submissa que ofereça imunidade seletiva a uma base ampliada dela demandante.

O joio assim preservado pode ser um ingrediente necessário daquilo que o ministro Edson Fachin, hoje temeroso de um futuro despótico, chamou de “escalada do autoritarismo no Brasil”.

Fernando  Haddad

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