Ensaio sobre como abrir novamente a janela

 

Por Valter Pomar*

 

Roberto Regalado, um camarada cubano, convidou-me para contribuir em uma “coletânea de ensaios sobre os governos de esquerda e progressistas, e o impacto neles da estratégia desestabilizadora desenvolvida pelo imperialismo e as oligarquias crioulas”.

Minha contribuição consistiu, em primeiro lugar, em conseguir um artigo de Gleisi Hoffmann, presidente nacional do Partido dos Trabalhadores. A tarefa foi cumprida com a ajuda dos companheiros que cabe mencionar: Ricardo Amaral e Marcelo Zero.

Em segundo lugar, correspondia-me escrever meu próprio artigo para a coletânea. E quando estava ocupado nisto, recordei-me que há não muito tempo, o mesmo Roberto Regalado me solicitou que participasse de uma outra coletânea, aquela intitulada A esquerda latino-americana a 20 anos da queda da União Soviética.

Participei nessa coletânea, publicada em formato de livro pela editora Ocean Sur, com um texto que pomposamente chamei Ensaio sobre uma janela aberta. Nele abordo quatro temas: “em que situação se encontrava a esquerda latino-americana em seu conjunto no ano 1991; o que passou com esta esquerda desde então; qual é sua situação atual; quais são suas perspectivas”.

Escolhi o ano de 1991, como é óbvio, devido ao desaparecimento da União Soviética, motivo pelo qual na parte inicial do Ensaio sobre uma janela aberta inclui um balanço da luta pelo socialismo desde 1917, cujo desenlace resumi assim: “O desaparecimento da URSS e das democracias populares do Leste europeu foi, portanto, resultado de uma das batalhas de um processo mais amplo, a saber, a transição entre duas etapas do capitalismo: a do imperialismo clássico e a do imperialismo neoliberal”.

Afirmei também que se notássemos “a correlação mundial de forças do ponto de vista das classes, o período imediatamente anterior e posterior a 1991 é a de derrota para as classes trabalhadoras. Esta derrota pode ser medida objetivamente em termos de extensão das jornadas, o valor relativo dos salários, as condições de trabalho e a oferta deserviços públicos e de democracia real”.

Vinte anos após a queda, em 2011, a situação havia mudado “um pouco, mas não tanto”. A saber: “a ofensiva desencadeada pelo capitalismo contra a classe trabalhadora, a partir da crise dos anos 1970, perdeu alento. Em alguns lugares, estamos conseguindo inclusive recuperar parte do espaço perdido. Mas, o cenário ainda tem muito de terra arrasada. No plano ideológico, isto se traduz em uma tremenda confusão e déficit teórico”.

Contudo, “paradoxalmente, o que vem ocorrendo no mundo a partir da crise dos anos 1970, particularmente após 1991, confirma o acerto das ideias fundadoras do marxismo”. E na América Latina estaríamos assistindo, duas décadas depois da queda, diversas tentativas de se iniciar um novo ciclo socialista, ao qual contribuíram quatro fatores, que transcrevo, na sequência, do mesmo modo como estavam redigidos no referido ensaio:

Primeiro: devido ao “lugar” ocupado por nossa região na divisão do trabalho vigente no período imperialista clássico, não tivemos em nosso continente uma experiência socialdemocrata equivalente ao Estado de bem-estar social, que cristalizasse a crença de que era possível conciliar capitalismodemocracia e bem-estar social. O que chegou mais perto disto (o populismo, especialmente o argentino) foi combatido com violência brutal pelas oligarquias e pelo imperialismo. Com outras palavras, inclusive onde a esquerda lutava por bandeiras de tipo capitalista, a burguesia realmente existente era em geral um sólido adversário. Isto, ainda que não tivesse eliminado as ilusões, deu às lutas dos anos 1980 um viés muito mais radical, sem o qual alguns êxitos da resistência ao neoliberalismo não teriam sido possíveis.

Segundo: apesar dos equívocos, das limitações e principalmente apesar do retrocesso causado pela combinação entre o bloqueio estadunidense e o colapso da URSS, a valente resistência cubana impediu que assistíssemos, entre nós, as cenas deprimentes e desmoralizantes vistas no Leste europeu e na própria URSS. Além disso, certas características da sociedade cubana continuavam sendo um diferencial positivo para o trabalhador pobre da maioria dos países latino-americanos; não era assim, na Europa, em grande parte dos casos e das pessoas. Isto tornou mais fácil, para grandes setores da esquerda latino-americana, manter a defesa do socialismo, perceber as especificidades nacionais e manter uma atitude mais crítica quanto a modelos supostamente universais, especialmente os vindos de outras regiões.

Terceiro: a hegemonia neoliberal, combinada com o predomínio estadunidense ocasionado pelo desaparecimento da URSS, era efetivamente e foi percebida imediatamente como um risco, não só para as esquerdas, mas para a soberania nacional e para o desenvolvimento econômico latino-americano. Para muitas organizações da esquerda regional, isto permitiu compensar com nacionalismo e desenvolvimentismo o que se perdia ou se diluía em termos de conteúdo programático socialista e revolucionário.

Quarto: o fim da URSS abriu imensas oportunidades de expansão para as potências capitalistas, especialmente para os Estados Unidos e para a nascente União Europeia. Daí se derivou uma concentração de esforços no Leste europeu e no Oriente Médio, acompanhada de uma certa “despreocupação sistêmica” com o que estava ocorrendo no quintal latino-americano. Isto explica, não o fato em si, mas a velocidade com a qual os partidos críticos do neoliberalismo chegaram ao governo, a partir de 1988, em importantes países da região.

Ao mesmo tempo, e de maneira que novamente chamei de paradoxal, foi a partir de 1998 que “se evidenciaram mais certas consequências do fim da URSS, assim como as derivadas do surgimento do capitalismo neoliberal. Implicações que pesavam sobre as ações da esquerda latino-americana, exatamente no momento em que começava a conquistar os governos nacionais de seus países”.

Implicações: as esquerdas que “chegam ao governo a partir de 1998, mas também aquelas que se mantiveram desde então na oposição, em alguns casos contra a direita, em outros casos contra os governos progressistas e de centro-esquerda, não conseguiram superar a  confusão ideológica e também não conseguiram resolver o déficit teórico que se expressa em três terrenos fundamentais: o da avaliação das tentativas de construção do socialismo do século XX, o da análise do capitalismo do século XXI e o da elaboração de uma estratégia adequada ao novo período histórico”.

Ainda a respeito disso, afirmei no ensaio que “a confusão ideológica e a limitação teórica não constituem um problema tão grave, quando o vento está a favor. […] Mas, quando o vento não sopra a favor, a clareza teórica e a consistência ideológica se tornam ativos fundamentais”. E alertei que naquele ano de 2012 estávamos em um momento de “ventos contraditórios”.

Implicações políticas: “salvo raras exceções, o conjunto das esquerdas latino-americanas incorporou a disputa eleitoral, parlamentar e governamental a seu arsenal estratégico. Ou seja, incorporou uma arma típica do arsenal socialdemocrata, no exato momento em que no Velho Mundo os aspectos progressistas da democracia burguesa e da socialdemocracia clássica estão em declive”.

No ensaio, argumentei que “a incorporação desta arma foi possível por diversos motivos. Da parte das esquerdas, podemos citar a derrota político-militar das experiências guerrilheiras, a redução dos preconceitos (bem fundamentados ou não) contra a “democracia burguesa”, e a dinâmica particular que permitiu uma mais ou menos exitosa combinação entre luta social e eleitoral em cada país”. Contudo, para que a arma eleitoral fosse utilizada com certo êxito pelas esquerdas, desde o final dos anos 1990 até agora, é preciso considerar também a mudança relativo na atitude dos Estados Unidos, das direitas das burguesias locais, que em vários países não tiveram os meios e/ou os motivos para bloquear eleitoralmente as esquerdas”.

E disse que, “passada certa euforia inicial, as diferentes esquerdas latino-americanas se depararam com os limites derivados do caminho eleitoral. De diferentes maneiras, até porque as esquerdas, os processos e as culturas políticas são distintas, foram se evidenciando as diferenças entre Estado e governo; a difícil combinação entre democracia representativa e democracia direta; os limites da participação popular e dos movimentos sociais; as diferenças entre legalidade revolucionária e legalidade institucional. Além disso, os mecanismos de defesa do Estado burguês – como a burocracia, a justiça, a corrupção e as forças armadas – operaram com eficiência para constranger os governos progressistas e de esquerda. Seja como for, ficou em evidência que a esquerda latino-americana precisa de uma maior compreensão das experiências regionais e mundiais que lançaram mão das armas eleitorais como meio para buscar transformar a sociedade”.

Finalmente, um terceiro tipo de implicação: “a compreensão da etapa histórica em que vivemos”, com maior precisão a noção de que “o socialismo se encontra ainda em um período de defensiva estratégica”.

Sobre isso, afirmei que “há mais de dez anos a esquerda vem ampliando sua participação nos governos e enfrentando com maior ou menor decisão o neoliberalismo, mas por todas as partes o capitalismo continua sendo hegemônico”.

Disse que isso não impedia “alguns setores da esquerda de batizar o processo político em curso em seus respectivos países com nomes combativos (diferentes variantes da “revolução”), nem impede a outros setores da esquerda “resolver” as dificuldades objetivas acusando os partidos governantes de falta de combatividade e de firmeza de propósitos, o que sem dúvidas é verdade em vários casos. Mas, para além das traições, do voluntarismo e do desejo, a verdade parece ser a seguinte: inclusive onde a esquerda governante segue fiel aos propósitos socialistas, as condições materiais da época em que vivemos impõem limites objetivos”.

Essencialmente, argumentei que “tais limites coagem os governantes de esquerda, até os politicamente mais radicais, a recorrer a métodos capitalistas para produzir desenvolvimento econômico, aumentar a produtividade sistêmica das economias, ampliar o controle sobre as riquezas nacionais e reduzir a dependência externa e o poder do capital transnacional, especialmente o financeiro. E, inclusive, tais limites forçam o financiamento das políticas sociais”.

Recordei que “o capitalismo neoliberal provocou um retrocesso no desenvolvimento econômico latino-americano. Uma das consequências políticas desse retrocesso foi o deslocamento, em favor da oposição de esquerda, de setores da burguesia e das camadas médias. Esse deslocamento tornou possível a vitória eleitoral dos atuais governos progressistas e de esquerda, e gerou governos pluriclassistas, vinculados geneticamente à defesa de economias plurais, com um amplo predomínio da propriedade privada, em suas variadas expressões, inclusive as mais contraditórias, como a propriedade cooperativa e o capitalismo de Estado”. Ao chegar a esse ponto, no “Ensaio sobre uma janela aberta”, resumi assim a situação:

No ano de 1991, a esquerda latino-americana vinha de um duplo processo de derrotas: primeiro, a derrota do ciclo guerrilheiro dos anos 1960 e 1970; depois, a derrota do ciclo de redemocratização dos anos 1980. O fim da URSS e a ascensão do neoliberalismo abrem um terceiro período, cujo desenlace é distinto: inicia-se, em 1998, um ciclo de vitórias eleitorais, que resulta em uma correlação de forças regional favorável, que ainda se mantém.

As condições internas e externas que tornaram possível este ciclo de vitórias permitiram a estes governos, em um primeiro momento, ampliar os níveis de soberania nacional, democracia políticabem-estar social e desenvolvimento econômico de seus países e seus povos. Mas, no fundamental, isto se fez mediante uma redistribuição distinta da renda, sem alterar a matriz de distribuição e produção da riqueza.

Em um segundo momento, as limitações da própria matriz de produção e distribuição da riqueza, acentuadas por outras variáveis – políticas, ideológicasestratégicaseconômicassociológicasgeopolíticas – fazem com que os níveis de soberania nacional, democracia políticabem-estar social e desenvolvimento econômicose mantenham em limites mais estreitos dos desejados inicialmente pela esquerda, governante ou opositora.

Naquele momento, em que escrevi Ensaio sobre uma janela aberta, disse que estávamos:

[…] neste segundo momento, que coincide com um agravamento da situação internacional, que repercute de duas maneiras fundamentais sobre a região: por um lado, complica sobremaneira a situação das economias que dependem do mercado internacional; por outro lado, aumenta a pressão das metrópoles sobre a região, concluindo aquele período de certa “desatenção estratégica” que facilitou certas vitórias eleitorais.

As limitações internas e a mudança de ambiente externo tendem a intensificar o conflito, dentro de cada país, entre as forças sociais e políticas que compõem o que chamamos esquerda; podem, também, exacerbar algumas diferenças entre os governos da região.

Dito isto, assim resumi as perspectivas, tal como eu as via naquele momento:

É necessário considerar, em primeiro lugar, a incidência sobre a região de macrovariáveis sobre as quais não temos influência direta: a velocidade e a profundidade da crise internacional, os conflitos entre as grandes potências, a extensão e impacto das guerras. Destacamos, entre as macrovariáveis, aquelas vinculadas ao futuro dos Estados Unidos: recuperará sua hegemonia global? Concentrará energias em sua hegemonia regional? Esgotará suas energias no conflito interno de seu próprio país?

É preciso considerar, em segundo lugar, o comportamento da burguesia latino-americana, em especial, dos setores transnacionais: qual é sua conduta frente aos governos progressistas e de esquerda? Qual é sua disposição em relação aos processos regionais de integração? Qual é a sua capacidade de competir com as burguesias metropolitanas e aspirar a um papel mais sólido no cenário mundial? Do “humor” da burguesia dependerá a estabilidade da via eleitoral e a solidez dos governos pluriclassistas. Ou, invertendo o argumento, sua “falta de humor” radicalizará as condições da luta de classes na região e em cada país.

Em terceiro lugar está a capacidade e disposição dos setores hegemônicos da esquerda – partidos políticos, movimentos sociais, intelectualidade e governos -. A pergunta é: até onde estes setores hegemônicos estão dispostos e conseguirão ultrapassar os limites do período atual, e com qual velocidade? Dito de outra maneira, quanto conseguirão aproveitar esta conjuntura política inédita na história regional, para aprofundar as condições de integração regional, soberania nacional, democratização política, ampliação do bem-estar social e do desenvolvimento econômico. E, principalmente, se vão conseguir ou não alterar os padrões estruturais de dependência externa e concentração da propriedade imperantes na região há séculos.

Considerando estas três grandes dimensões do problema, podemos resumir assim as perspectivas: potencialidades objetivas, dificuldades subjetivas e tempo escasso.

Potencialidades objetivas: o cenário internacional e as condições existentes hoje na América Latina, em especial na América do Sul, tornam possíveis duas grandes alternativas, a saber, um ciclo de desenvolvimento capitalista, com traços socialdemocratas, e/ou um novo ciclo de construção do socialismo.

Em relação a esta segunda alternativa, estamos, do ponto de vista material, relativamente melhor que a Rússia de 1917, que a China de 1949, que a Cuba de 1959 e que a Nicarágua de 1979.

Dificuldades subjetivas: hoje, aqueles que possuem a vontade não tem a força, e os que tem a força não demonstraram a vontade de adotar, com uma velocidade e uma intensidade adequada, as medidas necessárias para aproveitar as possibilidades abertas pela situação internacional e pela correlação regional de forças. Um detalhe importante: não há tempo e nem matéria-prima para formar outra esquerda. Ou bem a esquerda que temos aproveita a janela aberta, ou será perdida uma oportunidade.

O tempo está diminuindo: a evolução da crise internacional tende a produzir uma crescente instabilidade que sabota as condições de atuação da esquerda regional. A possibilidade de utilizar governos eleitos para fazer transformações significativas nas sociedades latino-americanas não irá durar para sempre. A janela aberta ao final dos anos 1990 ainda não se fechou. Mas, a tempestade que se aproxima pode fazer isto.

Conclui dizendo que:

[…] o jogo ainda não acabou, motivo pelo qual devemos trabalhar para que a esquerda latino-americana, em especial aquela que está governando, e dentro dela a brasileira, faça o que deve e pode fazer. Se isso acontecer, poderemos superar com êxito o atual período de defesa estratégica da luta pelo socialismo. Em resumo, a janela segue aberta.

Hoje, em fevereiro de 2018, mais ou menos seis anos após escrever o que acabo de transcrever acima, parece-me óbvio que algo mudou e mudou para pior. A derrota eleitoral na Argentina, o golpe no Brasil, a fraude em Honduras, a virada no Equador, a difícil situação da Venezuela, o conjunto da situação mostra como eram excessivamente otimistas os que falavam de “mudança de épocas”.

Contudo, evitando o impressionismo jornalístico, voltemos aos três pontos citados mais acima.

Hoje, em comparação com 2012, podemos dizer que a crise internacional prossegue, crescem os conflitos entre as grandes potências, aumenta a possibilidade de um conflito militar em grande escala. Os Estados Unidos estão buscando de maneira desesperada recuperar sua hegemonia global e regional, ao mesmo tempo em que crescem os conflitos internos naquele país.

Hoje, também podemos dizer que a burguesia latino-americana decidiu destruir os governos progressistas e de esquerda, deixar para trás os processos regionais de integração, reafirmar sua condição de sócia menor das burguesias metropolitanas, motivo pelo qual acabou a estabilidade da via eleitoral e acabou a solidez dos governos pluriclassistas. Dito de outra forma, há uma radicalização das condições da luta de classes na região e em cada país.

Também se está respondendo à terceira pergunta: ao contrário da propaganda que muitos de nós fazíamos, a verdade é que não fomos muito longe na tarefa de aprofundar as condições da integração regional, soberania nacional, democratização política, ampliação do bem-estar social e desenvolvimento econômico, nem na tarefa de alterar padrões estruturais de dependência externa e concentração da propriedade vigentes na região há séculos. Uma das provas disto é a rapidez com a qual está sendo desmontado o que os governos progressistas e de esquerda fizeram na região.

Em resumo: a tempestade veio e fechou a janela aberta ao final dos anos 1990. A pergunta colocada à esquerda já não é como aproveitar bem a janela que estava aberta. A questão que agora está posta, em especial, à esquerda brasileira, é como fazer para que a janela se abra novamente.

Digo “especialmente para a esquerda brasileira”, porque só mudando a correlação de forças no Brasil podemos mudar de forma duradoura e radical a situação no conjunto da região. Não se trata de quem vem primeiro e quem vem depois. Trata-se de constatar que o Brasil é indispensável para reunir a massa de recursos humanos e materiais que são necessários para a transformação radical e completa de nosso continente.

E o que pode ser dito, então, da situação brasileira?

Em 2013, pouco depois do décimo segundo aniversário da queda, no Brasilcomemoramos 10 anos da chegada de Lula à Presidência da República. Naquela época, o tom predominante no Partido dos Trabalhadores do Brasil e na maior parte da esquerda brasileira era de extremo otimismo.

O melhor exemplo deste otimismo é o livro Um salto para o futuro, escrito por Luiz Dulci e lançado em março de 2013. Dulci foi um importante dirigente sindical da categoria de professores do ensino médio, participou na fundação do Partido dos Trabalhadores em 1980, fez parte de nossa primeira bancada de parlamentares federais, atuou como ministro durante os oito anos de governo de Lula e escreveu o livro mencionado quando era um dos diretores do Instituto Lula. Portanto, é uma pessoa qualificada para fazer um balanço crítico e autocrítico de nossa experiência de governo. Mas, o livro não tem nada de autocrítico, ao contrário, sua leitura deixa claro como era difícil, em torno de 2013, mencionar e muito mais difícil ainda debater seriamente os problemas, as deficiências, as dificuldades, as ameaças que rondavam a esquerda brasileira e que se caíam sobre nossas cabeças poucas semanas depois que o citado livro chegou ao público.

Desde então, cinco anos se passaram debaixo da ponte. Mas, parece que foi muito mais tempo. Entre 2013 e 2017, assistimos a: grandes manifestações de massas, promovidas tanto pela esquerda como pela direita; dois processos eleitorais, em 2014 e 2016; um golpe midiático-parlamentar-judicial contra a presidenta Dilma, consumado com um impeachment ilegal em agosto de 2016; uma campanha sistemática dos meios de comunicação e uma perseguição judicial contra o PT, para o qual está se pensando inclusive em retirar o registro legal; a prisão e condenação de inúmeros dirigentes partidaristas; a aprovação pelo Congresso Nacional de diversas medidas antipopulares, antidemocráticas e antinacionais; e uma piora significativa nas condições de vida do povo brasileiro.

Mais recentemente, no dia 24 de janeiro de 2018, ocorreu a condenação em segunda instância judicial do presidente Lula, o que pode resultar em sua prisão. Por motivos óbvios, o que vier a ocorrer nas próximas semanas impactará não só nas eleições presidenciais de 2018, como também definirá dentro de quais parâmetros irá transcorrer a luta política e social no Brasil, com fortes repercussões internacionais.

Para um setor importante da direita, trata-se de uma guerra de extermínio contra o que consideram uma “organização criminosa”, que tem na agenda cancelar o registro eleitoral do Partido dos Trabalhadores, condenar e encarcerar o maior número possível de seus líderes, criminalizar a luta social e estigmatizar o pensamento de esquerda. Neste sentido, o objetivo vai muito além de impedir que Lula dispute a eleição presidencial de 2018.

Existem contradições no seio das forças golpistas. Expressam-se em diferentes pré-candidaturas presidenciais, em diferentes visões acerca do ativismo judicial, em maior ou menor disposição de aplicar todos os elementos do programa neoliberal Ponte para o futuro. Mas estas contradições não impedem que, por ação ou por omissão, o conjunto das forças golpistas contribua com a guerra de extermínio contra o PT.

Por conseguinte, é muito mais reduzida a possibilidade de se fazer alianças com setores de centro-direita e direita em defesa da democracia e contra o fascismo. Mais que reduzida, é nula a possibilidade de sedução dos setores do grande empresariado com promessas de que o retorno da esquerda ao governo traria de volta os bons tempos de “crescimento” e a “paz social”, que supostamente houve em alguns dos anos dos governos nacionais petistas. O grande empresariado é o principal autor do golpe, seu mandante e fiador. Como se observa em todo o mundo, o grande capital, especialmente o financeiro, não teme a recessão, o desemprego e nem a crise social. Pelo contrário, estimula tudo isto. Em definitivo, o grande empresariado lutou contra os poucos aspectos progressistas existentes na Constituição brasileira de 1988.

As candidaturas presidenciais petistas foram vitoriosas em quatro eleições presidenciais consecutivas, mas a esquerda não pôde impedir o golpe consumado em agosto de 2016. Também não pôde impedir a aprovação, no Congresso, de várias medidas antinacionais e antipopulares, nem pôde impedir a condenação judicial de Lula em segunda instância. E não conseguiu impedir o crescimento do conservadorismo político e ideológico, nem sequer em setores importantes da juventude e da classe trabalhadora.

Claro que a esquerda brasileira mantém a resistência, a capacidade de mobilização e um apoio popular que se manifesta nas pesquisas de intenção de voto que colocam Lulaem primeiro lugar. No entanto, é preciso reconhecer que nada disto foi suficiente, até agora, para derrotar a ofensiva golpista.

O presidente Lula encabeça as pesquisas feitas e publicadas até fevereiro de 2018, mas a maior parte do eleitorado ainda não tem candidato. Ou seja, Lula lidera na metade do eleitorado que já escolheu a quem irá votar. E não se deve minimizar o desgaste causado por anos de propaganda negativa. Além disso, na hipótese de que, ao final, prospere a interdição eleitoral de Lula, a esquerda brasileira como um todo, e o PT em particular, enfrentará um dilema de difícil solução.

Este dilema se resume na consigna: eleição sem Lula é fraude. O problema se apresentará na hipótese de que a direita leve até o final seu propósito de impedir que Lula seja candidato nas eleições presidenciais de 2018. Nesta circunstância, haveria fundamentalmente duas alternativas acerca das eleições presidenciais: ou participar de uma eleição que consideramos fraudulenta, nesse caso apoiando outra candidatura à presidência; ou manter a candidatura de Lula, ainda que seu nome não apareça na urna eletrônica.

Para as forças golpistas de centro-direita e direita, para o oligopólio midiático, para a cúpula do sistema judicial e das Forças Armadas, para o grande capital, especialmente o financeiro, é absolutamente inaceitável que a esquerda possa voltar a governar o Brasil. Por isso, “escalaram”: do impeachment passaram à condenação de Lula, agora estão preparando sua prisão, e se for necessário recorrerão a medidas ainda mais extremas como o cancelamento do registro do PT, o adiamento das eleições, a mudança de regime político e a intervenção militar aberta (no momento em que faço a revisão final deste artigo, o governo do Brasil decretou uma intervenção das forças armadas na segurança pública da segunda mais importante unidade da federação brasileira, o conhecido estado de nome Rio de Janeiro).

Por todos estes motivos, o clima hoje predominante na esquerda brasileira é totalmente diferente do imperante em 2013. A discussão já não é sobre o “salto para o futuro”, mas, sim, sobre o retorno ao passado, como resultado da implementação do programa dos golpistas. Não predomina o otimismo de 2013, mas, ao contrário, o pessimismo, ainda que disfarçado de realismo.

O curioso é que, tanto hoje como naquela época, continua sendo igualmente difícil realizar um debate sobre os problemas da esquerda brasileira e como superá-los. Em um e outro caso, um dos maiores obstáculos para o debate é o que vou chamar aqui sentido comum de curto prazo.

Pois bem: a negação em debater, ainda em 2010, a necessária mudança de rumos, tanto do governo encabeçado pelo PT, como dos setores da esquerda liderados por nosso partido, contribuiu para que nosso terceiro e quarto mandatos cambaleassem entre três posições:

a)repetir a dose do realizado no segundo mandato de Lula;

b)buscar enfrentar os inimigos sem plano, nem organização;

c)fazer um choque ortodoxo.

Mas, o desastre resultante deste zigue-zague não foi suficiente para que se abandonasse o sentido comum de curto prazo: hoje, grande parte da esquerda brasileira não pensa em outra coisa a não ser nas eleições de 2018.

É evidente que a esquerda deve e precisa ter fortes candidaturas a governadores, a senadores, a deputados federais e estaduais para disputar com a direita nas eleições de 2018.

O problema não reside nisso, mas no seguinte: inclusive supondo que a esquerda tenha um ótimo resultado nas eleições de 2018, inclusive caso se eleja Lula presidente da República, isso não teria as mesmas implicações que em 2002, 2006 e 2010. Desta vez, se a esquerda vencer, a outra parte continuará atuando como em 2014 e continuará operando na frequência do golpe; e fará tudo para impedir nossa tomada de posse e para sabotar de maneira violenta nosso governo.

Contra isso, não basta ter uma política eleitoral exitosa. É preciso ter outro tipo de estratégia política, acompanhada de níveis de organização e mobilização totalmente distintos dos que tivemos até hoje.

O mesmo raciocínio vale para o caso de uma derrota total ou parcial nas eleições de 2018: o que virá depois disso não serão menos, mas mais ataques violentos, contra os quais contribuirão muito pouco as posições institucionais que a esquerda tenha conquistado em 2018, em especial se estas posições tiverem sido conquistadas em uma linha de “respeito à ordem” e “conciliação de classes”.

Obviamente, não se está dizendo que ter posições institucionais seja inútil. O que se está dizendo é que a “utilidade” estratégica de parlamentares e governantes aumenta ou diminui muito dependendo da linha política e do nível de organização extrainstitucional adotadas pelas organizações de esquerda.

Vale dizer que grande parte da esquerda brasileira admite que é necessário adotar outra linha política, diferente da implementada entre 1995 e 2016. Grande parte também reconhece a necessidade de mudar profundamente os métodos de funcionamento da esquerda, com ênfase na recuperação dos espaços perdidos junto à classe trabalhadora.

Mas, há uma distância enorme e evidente entre o discurso e a prática. Em parte, isto ocorre por inércia, em outros casos por falta de imaginação e/ou experiência, mas principalmente porque uma parte importante da esquerda brasileira simplesmente não compreende as consequências do ocorrido em 2016, e continua acreditando na possibilidade de mudar o país sem infligir uma derrota profunda aos grandes capitalistas brasileiros.

A dificuldade de compreender o papel da classe dos grandes capitalistas não é um problema cognitivo. O problema é de outra natureza: existe um setor da esquerda brasileira, assim como existe um setor da classe trabalhadora, que não considera necessário conferir uma derrota profunda à classe dos grandes capitalistas. Ao contrário, acreditam que o caminho de “derrotar profundamente” nossos inimigos de classe é, além de inviável, prejudicial a nossos objetivos de curto e médio prazo: seria como o ótimo utópico, que acaba por converter o bom em inimigo.

Daí provém, igualmente, a indiferença e até a repulsa destes setores a qualquer referência ao socialismo e sua predileção por palavras de ordem do tipo “nação”, “soberania”, “Estado” e “desenvolvimento”.

Em última instância, esta postura de conciliação de classe é a que está por trás das políticas de aliança com forças de direita e centro-direita, por trás das ilusões republicanas nas instituições do “Estado democrático de direito”, e por trás das atitudes que nossos governos não adotaram contra o oligopólio dos meios de comunicação. No fundo, tudo se remete a um problema de classe, mais exatamente sobre como tratar a classe dominante.

No passado recente, a hegemonia do pensamento conciliador não colocou em risco a sobrevivência a curto prazo da esquerda brasileira. Ao contrário, a curto prazo aquela atitude pragmática pôde contribuir, em alguns casos, ao crescimento institucional da esquerda. No entanto, a médio prazo, sambemos quais foram as consequências da conciliação, inclusive em termos de redução da presença eleitoral e institucional da esquerda.

Na atual conjuntura e no futuro visível, a hegemonia do pensamento conciliador pode levar a desdobramentos catastróficos para a esquerda brasileira, não só a médio, mas também a curto prazo.

E o que fazer diante desta situação? Já não se trata, como dizíamos antes, de aproveitar a janela aberta. Trata-se de abri-la novamente. Isto implicará um conjunto de medidas, algumas de natureza prática, organizativa, política, e outras de natureza ideológica, cultural, teórica, intelectual. Delas, considero que será útil para os leitores deste artigo mencionar três.

Em primeiro lugar, como resultado do veloz desmonte do positivo que se fez entre 2003 e 2016, estamos vendo aparecer uma nova configuração social de luta de classes, diferente daquelas em que atuamos a maior parte dos últimos trinta anos. Como lidar com esta “nova” situação, em particular com a “nova” classe trabalhadora?

Em segundo lugar, em parte como desdobramento da ofensiva do capital contra nós, em parte resultado dos métodos utilizados para derrotar o PT, estamos vendo aparecer uma “nova normalidade” institucional, diferente daquela a qual nos acostumamos desde a promulgação da Constituição de 1988. Como atuar nesta “nova” institucionalidade?

Em terceiro lugar, as operações da direita para destruir o PT, assim como as tentativas que várias esquerdas fazem de “superar” o PT, estão alcançando o clímax e sua combinação pode levar a uma situação que não vimos em nenhuma das eleições presidenciais, de 1989 a 2014. Como atuar diante desta situação, levando em consideração que uma eventual destruição do PT arrastaria consigo toda a esquerda?

Já foi dito que tudo o que está vivo um dia morre: e todos os vivos morremos um pouco todos os dias, sem jamais ter a certeza de quanto nos resta para frente. Feita esta exceção, não há razão alguma para que o PT não sobreviva ainda por muito tempo.

Para citar exemplos brasileiros, basta constatar o caso do Partido Comunista e também o caso do Partido Trabalhista, um fundado em 1922, o outro em 1954. Ambos seguem atuando até hoje.

A questão relevante, claro está, não é saber se o PT sobreviverá, mas com qual influência social e com qual linha política. Nenhuma destas questões está dada de antemão. Variáveis internacionais e nacionais irão influenciar nisto, começando pelos desdobramentos da luta atualmente em curso entre o grande capital e a classe trabalhadora.

Contudo, uma coisa é certa: independente do que ocorrer nos próximos anos, incluídas as modificações da própria classe trabalhadora, esta continuará precisando de um partido de classe, de massas, socialista e revolucionário.

Se nós, que somos militantes do PT, não formos capazes de solucionar e superar as dificuldades atuais, para as futuras gerações será muito mais difícil.

Se, ao contrário, formos capazes de alterar nossa linha política, nossa política de organização e mobilização da classe trabalhadora, nosso legado às futuras gerações não será um problema, mas uma solução: o Partido dos Trabalhadores.

Seremos capazes? Parte importante da resposta saberemos nos próximos dias, semanas e meses. Nossa reação frente a uma possível ordem de prisão contra Lula, assim como nossa postura nas eleições de 2018 terão, para o futuro do PT, um significado semelhante ao que tiveram nossas posturas frente ao Colégio Eleitoral e frente à Constituição de 1988.

Logo se verá se seremos um partido integrado ou um partido disposto a subverter a ordem.

 

* Valter Pomar é militante do PT e professor da Universidade Federal do ABC.

 

Nota

Este artigo foi publicado na coletânea organizada por Roberto Regalado intitulada Los Gobiernos Progressistas y de Izquierda en America Latina (2018).

 

Fonte: IHU-Online

Tradução: Cepat

Versão eletrônica originalmente publicada em Alainet

 

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