Eleições municipais e políticas públicas de esquerda: para não esquecer a política cognitiva

Por Renato Dagnino (*)

Este documento resume ideias que venho discutindo com militantes de esquerda envolvidos com a elaboração (formulação, implementação e avaliação) das políticas públicas. Seu contexto é o esforço por conceber um plano de governo para as eleições municipais e seu foco a política cognitiva. Aquela política que abrange as que hoje ainda se encontram institucionalmente encapsuladas, de Educação e de Ciência, Tecnologia e Inovação, mas que devem ser cada vez mais interconectadas para viabilizar o projeto político da esquerda.

Referidas ao momento que estamos vivendo, essas ideias se orientam para enfrentar o “dia depois” de uma seguramente longa pandemia (que começa amanhã!).

Para justificar seu formato esquisito, explico que ele resulta da junção de três documentos apresentados em momentos distintos. Ele está organizado em seis seções além desta introdução.

A primeira e a penúltima se originam de um documento orientado a auxiliar os militantes envolvidos com a área de CTI e TICs a cooptar candidatos da esquerda para “comprarem” o pacote da política cognitiva; que eles, em geral, pouco conhecem. A segunda e terceira decorrem de uma solicitação feita por um deles de que eu explicasse melhor o que estava querendo dizer. A última, de uma quase reclamação de outro companheiro. Depois de ler que está escrito até ali, ele desafiou: temos que ser ainda mais claros. Espero que justifique o pedido de desculpas pelas reiterações que o documento contém, a forma como ele foi elaborado.

1. Por que as eleições municipais são importantes?

A importância das eleições municipais para a esquerda se deve a pelo menos quatro aspectos (ou fatores).

1. É no município onde surgem e se solucionam os problemas. É aqui onde se manifesta a maior parte dos problemas que afligem a classe trabalhadora e outros segmentos explorados. E é por isso aí que mais eficazmente a esquerda deve atuar para deslanchar a cadeia causal sócio-política e institucional – conscientização, mobilização, participação e empoderamento – que irá equacioná-los.

2. Os momentos e as condições. É aqui que os dois primeiros momentos dessa cadeia – conscientização, mobilização – pode ser operados pelos seus militantes visando, por um lado, a criar as condições subjetivas para a sua solução no âmbito do movimento popular. E, por outro, a mobilizar a energia desse movimento para possibilitar que os companheiros que venham a ocupar cargos no Executivo e Legislativo, abram passo à efetivação dos outros dois momentos – , participação e empoderamento – que possibilitam a consecução das condições objetivas necessárias para a mudança que quermos.

3. As conquistas da esquerda. Por causa disso, é também aqui onde e esquerda tem logrado suas mais expressivas conquistas no campo da governança e da governabilidade que dela depende. Algumas delas, como o Orçamento Participativo – mundialmente conhecido e imitado -, são ícones do nosso modo de governar que devemos estender a outros canais de implementação de políticas públicas que envolvam a transferência de bens e serviços que não demandem necessariamente a alocação de orçamento mas que sejam intensivas em conhecimento tecnocientífico.

4. Aproveitando a oportunidade. É mediante a conscientização e a mobilização da classe trabalhadora – típicas dos momentos pré-eleitorais – que processos de participação e empoderamento de maior permanência, potencial de retroalimentação e capacidade de materialização do nosso projeto político, todos eles essenciais para enfrentar o poder da classe proprietária se tornam possíveis.

Compõem esse quadro algumas outras constatações que nos impelem a materializar a percepção de que temos que começar de novo a partir da “base” evitando repetir erros e aproveitando nosso potencial de contribuição. Em particular o que deriva do fato de que, por serem portadores de um conhecimento tecnocientífico passível de ser orientado pelo nosso projeto político, os militantes envolvidos com a política cognitiva podem otimizar as implicações decorrentes do enfrentamento de classes.

2. A concepção de política pública da esquerda

Antes de retomar o tema central – a política cognitiva de esquerda – é conveniente enquadrá-lo no marco de referência que empregamos para analisar a política pública.

1. Entende-se a política pública como um resultado da interação de atores sociais com interesses e valores distintos que expressa o compromisso de construção de um cenário desejável para todos;

2. Dado que sua cena de chegada situada no futuro a ser construído deve contemplar uma situação melhor para todos, é objetivo da política pública produzir um aumento da eficiência daquela interação;

3. Como o desenvolvimento da tecnociência – entendida como uma confluência das ciências exatas, duras (e consideradas às vezes “desumanas”), das humanas, sociais (e às vezes “inexatas”), dos outros saberes (“a-científicos”) e de suas aplicações – é o meio mais idôneo para lograr esse aumento de eficiência (e, idealmente de eficácia e efetividade), a política pública deve orientá-lo para a construção desse cenário desejável;

4. Atores sociais com crescente poder político estão lutando para que a retomada do desenvolvimento, já durante a pandemia, seja coerente com valores de solidariedade, equidade e sustentabilidade ambiental;

5. Está por isso emergindo um compromisso em torno desses valores que demanda para sua materialização, não apenas um novo tipo de políticas públicas, mas uma outra maneira de conceber seu processo de formulação, implementação e avaliação;

6. A cena de partida da trajetória a construir, que expressa esse compromisso, se caracteriza por condições sócio-políticas e econômico-produtivas reconhecidamente precárias e agravadas pela pandemia e, cabe salientar, antagônicas em relação ao cenário desejável;

7. Sua cena de chegada antecipa uma correlação de forças desbalanceada em favor daqueles atores emergentes ancorados no movimento popular e em detrimento dos que se beneficiam dessas condições, e uma intermediação estatal com ela coerente;

8. Para isso, a trajetória que a ela conduz terá que alimentar e ser alimentada por uma política econômico-produtiva significativamente distinta daquela implementada pelas coalizões de governo de esquerda;

9. Ela deverá privilegiar a estratégia solidária do “trabalho e renda”, e não a estratégia empresarial usual do “emprego e salário”; a “geração de renda pelos mais pobres” através da economia solidária, e não apenas a “distribuição de renda para os mais pobres” buscada pelas medidas compensatórias; a reorganização do nosso tecido socioeconômico-produtivo mediante empreendimentos solidários focados na implementação do cenário desejável, e não a reindustrialização baseada numa improvável conversão das empresas cada vez mais financeirizadas e que, se ocorrer, irá incorporar conhecimento tecnocientífico poupador de mão de obra.

3. O componente cognitivo da política pública da esquerda

Tendo como referência as anteriores, esta seção avança no sentido de indicar como o conhecimento deve transversalizar as nossas políticas públicas.

1. A alteração de modo eficaz da cena de partida na direção do cenário desejável exige a identificação da demanda cognitiva colocada por aquele compromisso fundado nos valores da solidariedade, equidade e sustentabilidade ambiental, e pelas mudanças sócio-organizacionais e econômico-produtivas com ele envolvidas e que devem alavancá-lo;

2. A satisfação dessa demanda terá que ocorrer mediante a mobilização do potencial tecnocientífico existente e a inevitável – devido à sua originalidade e complexidade – concepção de sínteses disciplinares, e a sua adequada operacionalização;

3. Os critérios para orientar esse procedimento terão que se basear na pertinência do conhecimento disponível para alcançar os objetivos econômicos, sociais e, também, políticos priorizados pelo cenário desejável;

4. O que implica que, além de problem and policy oriented, esses critérios tenham que ser political oriented, isto é, têm que fomentar processos de conscientização, mobilização, participação e empoderamento daqueles atores sociais detentores de crescente poder político e portadores daqueles valores;

5. O fato de que boa parte do conhecimento tecnocientífico disponível não foi desenvolvido segundo esses critérios faz com que sua adequação sociotécnica seja vital para a construção do cenário desejável.

4. Os personagens e o território da política cognitiva

1. Personagem central para essa adequação sociotécnica são os “cientistas duros” das organizações públicas de ensino e pesquisa, onde se abriga nosso potencial tecnocientífico, que adiram à construção do cenário desejável;

2. Cabe a eles auxiliar na decodificação das necessidades materiais (produção e consumo de bens e serviços) e imateriais (educação, saúde, segurança, etc.) em demandas cognitivas a serem satisfeitas mediante o reprojetamento (adequação sociotécnica) do conhecimento tecnocientífico que eles possuem;

3. Essa decodificação demanda deles, para ser efetiva, mais do que sua adesão ideológica ao cenário desejável; é preciso que eles sejam a ele, também, “aderentes”;

4. A interação – multi e, idealmente interdisciplinar – entre cientistas “desumanos” e “inexatos” é uma condição-necessária para catalisar a reação que transforma adesão em “aderência”;

5. Outra condição, é que a interação se verifique num território sulcado por aqueles valores e pelas mudanças sócio-organizacionais e econômico-produtivas desejadas, e adubado pelo Estado com políticas que deem voz e legitimidade a um segundo personagem também essencial: os participantes da economia solidária;

6. Fruto da organização do movimento popular em redes de empreendimentos solidários (baseados na propriedade coletiva dos meios de produção e na autogestão), ela deverá ser crescentemente considerada como um parceiro fundamental da comunidade de pesquisa para promover a tecnociência solidária que alavancará a melhoria de nossas políticas públicas;

7. A tarefa de provocar essa interação não deve ser relegada em benefício absoluto de outras – mais focadas, de menor prazo de maturação e mais demandantes de capacidade operacional e recursos materiais e humanos – que estão sendo impulsionadas no País.

5. A política cognitiva de esquerda no município: algumas novidades

O fato de que a quase totalidade das decisões governamentais relativas à área tem ocorrido nas esferas federal e estadual, torna esta conjuntura pré-eleitoral uma oportunidade favorável para preencher o vazio existente na esfera municipal.

É por isso urgente que formulemos propostas de ação orientadas a satisfazer nessa esfera demandas intensivas em conhecimento tecnocientífico coerentes com (e necessárias para) a implementação do projeto político da esquerda.

É em torno delas que deverá pautar-se nossa tarefa de cooptação junto aos companheiros que irão disputar as eleições. Uma análise preliminar que tem como referência os quatro aspectos genéricos que dizem respeito à importância das eleições municipais apontam algumas linhas de ação específicas.

Essas linhas de ação, cujos horizontes de maturação e viabilidade de implantação são bem diferentes, deverão ser incorporadas ao programa de governo desses companheiros respeitando, é claro, suas idiossincrasias, as especificidades territoriais e de seu eleitorado, etc.

De modo a organizar seu detalhamento, elas estão sucessivamente indicadas, sem pretender priorizar, em quatro blocos que estão mais ou menos associados a cada um daqueles quatro aspectos genéricos mencionados na primeira seção.

1. Uma nova orientação para as políticas públicas. O poder municipal deve privilegiar (1) a estratégia solidária do “trabalho e renda”, e não a estratégia empresarial usual do “emprego e salário” que supõe o subsídio e a alocação prioritária das compras públicas; (2) a política inovadora de “geração de renda pelos mais pobres” através das redes de produção e consumo da economia solidária a serem apoiadas pelo poder municipal, e não apenas a política compensatória tradicional de “distribuição de renda para os mais pobres” orientadas a aumentar, pela via da “renda mínima”, a demanda para empresas; (3) a reorganização do nosso tecido socioeconômico-produtivo pós-pandemia mediante

empreendimentos solidários focados na implementação do nosso projeto e no resgate dos mais de 80 milhões de trabalhadores que sobrevivem na “economia infernal”, e não a reindustrialização baseada numa improvável conversão das empresas cada vez mais financeirizadas e que, se ocorrer, irá incorporar conhecimento tecnocientífico monopolizado, poupador de mão de obra, predatório, etc.

2. Uma nova relação com os atores da CTI. Ações realizadas por prefeitos e vereadores orientadas a aumentar a eficiência, eficácia e efetividade do aparelho de Estado na solução dos problemas locais que afligem a classe trabalhadora e outros segmentos explorados mediante a incorporação de conhecimento tecnocientífico proporcionado por integrantes daquelas instituições e por militantes de esquerda envolvidos com a proposta da Economia Solidária. Mobilizar especialmente os integrantes de esquerda de instituições públicas de ensino e pesquisa interessados em satisfazer as demandas cognitivas embutidas nas necessidades materiais da classe trabalhadora e de outros segmentos explorados com o conhecimento tecnocientífico que operam.

3. Integrar tecnociência solidária ao governo. Ações visando à concepção de sistemas informatizados tipo “governo eletrônico”, fundamentados nos princípios da democracia participativa, são cada vez mais necessárias e é crescente a oportunidade de sua implementação. Ademais de aumentar a governança e a efetividade do poder municipal, elas deverão prospectar as necessidades materiais da população e “decodificá-las” de modo a, expandindo o escopo do que foi chamado de “modo petista de governar”, explicitar as demandas cognitivas a elas associadas e encaminhá-las rotineiramente às organizações públicas atuantes na área de CTI e TI e às redes a serem formadas com a participação de empreendimentos solidários. Reprojetar a tecnociência capitalista, através da adequação sociotécnica, na direção da tecnociência solidária supõe incorporar ao ato de governr os valores da propriedade coletiva dos meios de produção e da autogestão.

4. Aproveitar a conjuntura eleitoral para avançar. Ações imediatas que, apoiadas no potencial dos militantes de esquerda possam desencadear no período pré-eleitoral em curso, um potente movimento de conscientização da sociedade acerca da legitimidade da nossa projeto e de mobilização dos simpatizantes no sentido de convencer seus pares, neutralizar a campanha midiática dos nossos adversários e esclarecer como serão efetivados os processos de consulta, participação e empoderamento que irão pautar nossos governos.

6. Sendo ainda mais claro: 13 pontos do plano de governo de CTI de esquerda para as eleições municipais

O plano deve levar em conta…

1. As reais condições sociais, culturais, ideológicas, políticas, cognitivas, econômicas, produtivas etc. do município e, sobretudo, da populações mais pobre e dos territórios mais carentes submergidos na “economia infernal”.

2. Compromissos assumidos de modo articulado pelo prefeito e pelos vereadores de esquerda com esses atores visando à implementação do plano e o enfrentamento dos obstáculos de quaisquer natureza que ela originar.

3. Que ele deve ser, à semelhança do que deve ocorrer em outras áreas de política pública, um plano PÓS-PANDEMIA, com todas as ameaças e, principalmente, oportunidades, que o clamor mundial de SOLIDARIEDADE abre para a esquerda.

4. Que por isto, ele terá que revisar corajosamente prioridades e cursos de ação pregressos orientadas à construção de um cenário que hoje se mostra inviável, do ponto de vista social, ambiental, etc., pouco aderente à perspectiva de amenizar as crises do capitalismo e, menos ainda, à proposta da esquerda.

E, entender que…

5. A política cognitiva (entre as quais a de CTI e TICs, junto com a de Educação, é fundamental) é uma política-meio; ela viabiliza muitas outras políticas públicas, que podem ser consideradas políticas-fim por insumirem o resultado que ela gera.

6. Por essa e outras razões, ela deve ter como referência central o atendimento da demanda cognitiva das políticas municipais pelas organizações públicas de ensino e pesquisa, em especial aquela associada às atividades de produção e consumo de bens e serviços que atendam às regiões e populações mais pobres; uma das principais dificuldades que ali temos que enfrentar.

7. Esse segmento da população, cujo tamanho e precariedade seguirão aumentando fortemente, deve estar envolvido diretamente com essas atividades de produção e consumo e com as de natureza cognitiva (tecnocientífica) a elas relacionadas e que deverão estar sinergicamente integradas pelo plano de governo.

E fazer com que…

8. O governo municipal, por isso, priorize, sistemática e decididamente, a utilização da capacidade institucional, cognitiva, financeira, cultural, etc. – própria ou mobilizável – para a organização de arranjos econômico-produtivos baseados na propriedade coletiva e na autogestão capacitados para realizar esses dois conjuntos de atividade.

9. A “cesta” de subsídios concedida a esses empreendimentos solidários, que deve ter sua qualidade urgente e participativamente concebida em função das características daqueles bens e serviços, etc., deve ter um valor cuja quantidade deve ser pelo menos equivalente da cesta” destinada à empresa.

10. Um importante critério de priorização das atividades a serem apoiadas deve ser o perfil das compras públicas (18% do PIB-BR orientado para a empresa) além, é claro, do tamanho e natureza do consumo final e produtivo dos envolvidos direta e indiretamente com as redes de economia solidária,

11. Ao contrário do que ocorre nos níveis federal e estadual, onde a política cognitiva se concentra no subsídio às atividades cognitivas realizadas pelas corporações situadas nas organizações públicas de ensino e pesquisa, a alocação do recurso associado ao poder de compra do Estado é o principal vetor de que dispõe o poder público para orientar o desenvolvimento de capacidades cognitivas no território.

12. Por isso, construir capacidade institucional, financeira e política para reorientar o perfil das compras públicas, e zelar para que o ciclo virtuoso estratégico visado pelo Plano seja taticamente viabilizado e defendido, deve ser um compromisso central dos prefeitos e vereadores de esquerda com a comunidade.

13. A geração de um círculo virtuoso ainda mais abrangente – conscientização, mobilização participação e empoderamento – junto ao movimento popular que acumule forças para a construção do cenário popular e democrático do pós-pandemia possui, na Economia e na Tecnociência Solidárias, uma poderosíssima alavanca.

(*) Renato Dagnino é professor da Unicamp

 

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