Desmontes invisíveis, reações palpáveis

Por Carla Mangueira

O desgoverno Temer trouxe consigo não apenas o ranço do impeachment ilegítimo e do consequente golpe, mas uma série de medidas e reformas estruturais que recoloca o país nos trilhos do neoliberalismo. Há quem defenda possíveis melhoras, mas questiona-se: para quem essas melhoras foram destinadas? Quais classes e que mercados foram evidentemente beneficiadas com as medidas até então tomadas? Os setores financeiros, banqueiros, investidores estrangeiros e a minoria abastada do país, sem dúvida. Enquanto isso, a classe trabalhadora brasileira segue sendo massacrada por medidas anti-povo que tentam retirar das suas agendas de lutas histórias direitos conquistados a duras penas pelos trabalhadores.

Neste contexto de cortes e reajustes, o tripé de seguridade social brasileiro, formalizado pela Constituição Federal de 1988, segue ameaçado, tendo suas políticas regentes – saúde, previdência social e assistência social – pouco a pouco revistas e recodificadas. Após o ataque à previdência social e o mapeamento de aproximadamente R$ 20 mi de reais por parte do “presidente” em defesa da reforma, o próximo alvo é o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), modelo de gestão e unificação para operacionalização da política de assistência social brasileira.

O Sistema Único de Assistência Social (SUAS) surge no primeiro mandato do presidente Lula, por meio de uma deliberação da IV Conferência Nacional de Assistência Social, em 2004, que decidiu por sua implementação em todo o território nacional, de forma descentralizada e participativa, conforme consta na Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS, 1993), tornando-se, dessa forma, uma política de Estado.

Ao falar dessas reformas sociais promovidas a partir de 2003, faz-se necessário compreender, antes e sobretudo, o que significou, de fato, a chegada do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Palácio do Planalto naquele 1º de janeiro. A vitória do PT não significou apenas a retirada da elite brasileira do poder após anos de governo, mas significou, sobremaneira, a abertura de um período onde a classe trabalhadora passou a ter voz para reconhecer-se como parte integrante da roda vida chamada Brasil.

O sistema de proteção social brasileiro, a partir de 2003, passou a ser a resposta principal ao modelo militarmente concebido anos anteriores, tomando como princípios a descentralização da política, a maior participação popular nos processos decisórios, o combate ao clientelismo nas práticas relacionadas à área social e a busca da equidade na prestação dos serviços. Além disso, foi posto como primordial a criação de políticas emergenciais para famílias carentes e de baixa renda.

Após um longo período sendo posta como prática caritativa, a assistência social brasileira, bem como todo o sistema de proteção social, passou a ser debatida e veiculada como direito do cidadão e dever do Estado. A assistência social, aos poucos compreendida como direito do povo ao invés de benesse do governo, permitiu que milhares de brasileiros e brasileiras voltassem a sentir-se organicamente como cidadãos e sujeitos de direito.

A guinada da classe trabalhadora brasileira, no contexto da implementação do SUAS, se deu, sobretudo, por meio dos programas sociais criados durante o governo petista. O Bolsa Familia, por exemplo, já havia atingido, em 2008, 11 milhões de famílias; o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), que tinha como público-alvo crianças e adolescentes dos sete aos quinze anos, beneficiou cerca de 857 mil crianças e adolescentes; Luz para Todos, com o objetivo de levar luz elétrica aos moradores rurais, alcançou 7,2 milhões de pessoas.

O resultado da reforma social? Acesso.

Falar do SUAS e do seu período de implantação significa falar dos caminhos que foram abertos às trabalhadoras e trabalhadores do país numa perspectiva de direitos. Falar da assistência social assegurada como direito irrestrito significa falar da base que originou novas conquistas. Com a implementação do SUAS e a redistribuição de renda, os indicadores mudaram. Com relação a 1992, o país viveu para ver, em 2002, a diminuição da taxa de analfabetismo adulto e infantil (17,2% x 11,9%), o aumento de crianças de 7 a 14 anos na escola (81,9% x 94,5%), a diminuição da defasagem média dos anos de estudo (2,1% x 1,1%), da mortalidade infantil (45,2% x 27,8%) e a diminuição da proporção de pobres no país (40,8% x 32,9%).

O povo, organicamente trabalhador, que via seus direitos sendo empossados pelas classes abastadas do país até então, retornou ao seu lugar de direito; os espaços, antes amplamente coordenados por poucos, passou a ser ocupado por muitos. A adoção de um sistema de proteção social, embrionário após tantos anos de retrocessos sociais, que reconhecesse as expressões da questão social oriundas da luta de classes e, principalmente, a trabalhadora e do trabalhador enquanto protagonistas neste processo político-social, foi primordial para que a base do país virasse o jogo a seu favor.

Hoje, a minoria tenta, a todo custo, colocar a base embaixo dos seus pés.

O SUAS não foi apenas um ganho, social, mas foi, sobretudo, um ganho político. Um ganho político de um trabalhador para todos os trabalhadores. Ele foi a chave para que milhares de brasileiras e brasileiros acessassem direitos que durante muito tempo foram negados e reservados a uma pequena parcela da população. Hoje, enquanto política de Estado, o SUAS vem sendo ameaçado com déficits estruturais, como repasse continuado para o Fundo Nacional de Assistência Social, o não cumprimento dos pactos que regem a assistência social, além do congelamento da agenda de expansão de recursos referente ao II Plano Decenal de Assistência Social desde 2016.

Na agenda orçamentária, Temer estabeleceu, para o SUAS, em 2018, uma redução de aproximadamente 97%, que significa, por exemplo, para os CRAS, um novo repasse previsto em R$ 800.000,00, que não abarca, de fato, todas as realidades que são apresentadas. Para além de um corte orçamentário, Temer tem como proposta, após bons anos de ascensão social das camadas socioeconomicamente vulnerável, a retomada da administração da pobreza e, consequentemente, o agravo da crise que ronda o país. O que está por trás desse discurso de crise não é uma tentativa de salvação, mas um remodelamento da lógica da assistência social que culminará na retirada do Estado, tornando-a uma política residual.

O que está sendo feito com o SUAS não é apenas uma política de contenção, mas é a inviabilização de uma política e de um sistema que gera acesso e dá voz ao trabalhador; uma política que devolveu dignidade, cidadania e direitos. Com os cortes progressivos, o SUAS se tornará inviabilizado até ser fechado para a população, privando as camadas vulneráveis de qualquer possibilidade de ascensão ou proteção social mínima.

Nossa resposta a tudo isso? Luta.

Em tempos de grandes retrocessos em diversos setores nacionais, faz-se necessário que, junto ao trabalhador, pensemos política e façamos política. Que, no interior das universidades, o movimento estudantil se articule e se proponha a debater as reformas estruturais do desgoverno a fim de engrossar o coro junto ao povo – e, impossível não citar, que o movimento estudantil de Serviço Social se faça um na luta contra os retrocessos. Para além de dissenções político-partidárias, o que vemos é a tentativa de mudança dos rumos do país e do nosso projeto de sociedade. Contra isso, não existem lados, apenas o que nos coloca frente a tudo isso para lutar sem temer ao invés de temer sem lutar.

Militância para tempos de guerra. Essa é a resposta, a chave e o caminho.

Carla Mangueira, Estudante de Serviço Social (UFF-Campos) e militante da Juventude da Articulação de Esquerda em Campos dos Goytacazes-RJ;

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