“De boas intenções o Congresso tá cheio”: o PL 2630 e as “fábricas de desinformação”

 Por Alexandre Arns Gonzales[1]

Na sexta-feira (29/05) ocorreu uma comoção em torno da consulta pública, realizada pelo Senado de República, sobre o Projeto de Lei (PL) 2630, denominado de “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”. O projeto, como indica o Artigo 1º, tem como objetivo estabelecer “normas, diretrizes e mecanismos de transparência de redes sociais [por exemplo, Facebook, Instagram e Twitter] e de serviços de mensageria privada [por exemplo, WhatsApp] através da internet, para desestimular o seu abuso ou manipulação com potencial de dar causa a danos individuais ou coletivos” (destaque meu). A intenção – como foi reiterado por diversas pessoas, que farei a devida referência ao longo do texto – é boa, mas se equivoca na forma e ausência de método.

O objetivo deste texto é tentar sistematizar a discussão que se desenvolveu nestes dias em torno deste Projeto de Lei porque ele toca em questões que, na atual conjuntura, são muito sensíveis não apenas a disputa política imediata – como o enfrentamento das “fábricas de desinformação” ou “milícias digitais” – mas, sobretudo, a compreensão das estrutura que organiza a economia política dos dados – a infraestrutura lógica e física que empresas como Google e Facebook são responsáveis. De antemão, sinalizo que não sou letrado no debate sobre regulação, mas acho que posso contribuir com a organização das questões que, quem é, apresenta e aponta como riscos para a proposta de solução para estes problemas.

Algumas figuras públicas de internet, como o Gregório Duvivier; Maria Bopp, a Bloguerinha do Fim do Mundo; Fábio Porchat, entre outras pessoas, publicaram comentários para mobilizar a participação na consulta do Senado para votar pela aprovação do PL 2630. Em reação – por onde consegui acompanhar a discussão nas redes – a Bruna Santos, da Coding Rights; e a Mariana Valente, do InternetLab, engajaram na discussão com essas figuras públicas e lograram que elas ponderassem sobre os problemas do projeto de lei. Existe um campo progressista que discute os problemas que o projeto de lei contém e não vou ser capaz de, neste texto, abarcar o conjunto deles, mas acredito que é possível tratar de um deles – a concentração de poder à empresas provedoras de serviços na internet – e indicar onde reside, talvez, parte da solução para a luta contra a “fábrica de desinformação” e “milícias digitais”.

   

29 de maio de 2020

O projeto institui aos provedores de serviços na internet – Facebook e Google – a responsabilidade de avaliar o que são “desinformação”, “contas inautênticas”, “disseminadores artificiais”, entre outros – conceitos que estão, genericamente, definidos no PL 2630 – e agir sobre eles. O projeto não prevê método de identificação e avaliação dos conteúdo considerados inautênticos e, considerando a escala de análise que precisaria ser realizada, estas empresas, provavelmente, empregariam mecanismos automatizados de avaliação destes conteúdos, ao invés de empregar avaliadores humanos neste processo. Além disso, pela ausência de método, o texto não prevê como que um usuário, que queira protestar contra o eventual abuso da decisão, possa recorrer.

De fato, pode-se argumentar que estas empresas já agem sobre a moderação do conteúdo publicado pelos seus usuários, casos recentes, inclusive, ilustram isso, como quando o Twitter apagou a publicação do miliciano que ocupa o Palácio do Planalto e quando o Instagram sinalizou o conteúdo dele como “falso”[2]. No entanto, na medida em que o projeto de lei oficializa essas obrigações às empresas, incorre-se no risco delas adotarem como política a priorização da remoção dos conteúdos, para depois verificar a autenticidade do usuário ou do conteúdo.

O debate sobre a extensão da responsabilidade das empresas já foi realizado, em 2014, num processo que resultou no Marco Civil da Internet. Não que o debate não possa ser revisto, mas ele precisa ser feito antes de mais nada. O Marco Civil da Internet responsabiliza os provedores de serviços na internet, sobre conteúdo de terceiros – como os usuários – por meio de decisão judicial. A justificativa disto é evidente, o interesse do Marco Civil reside sobre a proteção da liberdade de expressão. Quando o PL 2630 inverte este aspecto, ele concentra poder de avaliação e decisão às empresas, legaliza uma regulação privada, elaborada por elas próprias sobre como elas definem  liberdade de expressão[3].

O debate sobre enfrentamento a “desinformação” é marcado pela tensão de medidas que, abusadas, podem cercear a liberdade de expressão, sobretudo quando as iniciativas de regulação visam a tentativa de definir e, nos piores casos, criminalizar a “desinformação”. Por isso que, para dar outro enfoque ao debate, o entendimento de como que as “fábricas de desinformação” funcionam são importantes. A ideia de “fábrica” vincula à prática de de “desinformar” a ideia de método de gerenciamento da produção da “desinformação”, pode adquirir escala e, se avançarmos mais na análise, ela integra uma divisão internacional do trabalho no âmbito da economia política dos dados.

Nesta perspectiva, entender sobre o financiamento destas “fábricas” é fundamental. Como comentou Carlos Affonso, “[a]s redes de desinformação custam caro, precisam de financiamento. A abordagem inicial para combater fake news é o ‘follow the money’, ou seja, quem está financiando as fazendas de robôs? Quem paga a conta das empresas de disparos em massa de mensagens? E essa lei [PL 2630] não desarma nada disso”[4].

A iniciativa do “Sleeping Giants”[5], no Twitter, por exemplo, tem realizado uma campanha de aviso à grandes marcas que tem seus anúncios veiculados em sites, identificados pela campanha, como produtores de “desinformação”. Este tipo de campanha evidencia como que os sites que fazem parte desta “indústria da desinformação” dominam as técnicas do mercado de anúncios digitais, que, por sua vez, estão concentrados nos sistemas da Google e Facebook[6]. O domínio sobre estas técnicas é relevante porque demonstra o esforço político e econômico de organização destes grupos e das campanhas, ou seja, a “desinformação” não se trata, apenas, da “poluição” do ambiente de comunicação pela multiplicação de fontes de informação, seja na Web ou nas plataformas de mídia, mas de uma tática política voltada para este fim.

[1]    Alexandre Arns Gonzales  é doutorando em Ciência Política do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, membro do grupo de pesquisa Resocie e pesquisador sobre o desenvolvimento da economia política dos dados no âmbito do capitalismo mundial e sua relação com a democracia.

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[2]     Por mais que, no Brasil, o ocupante do Planalto seja um aliado do vírus e, use da pandemia para promover sua política de morte, este tipo de medida – de remoção de conteúdo ou indicação de que ele é “falso” – não deve ser prestigiada como correta. Vivemos um período de exceção do ordenamento jurídico brasileiro, há tempos, mas se este tipo de medida fosse empregada contra qualquer outro chefe de Estado, sensato, estas ações dos provedores de serviços na internet deveriam ser vistas como abuso do poder destas empresas.

[3]     Nota pública da Coalizão Direitos na Rede sobre o projeto da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet (PL 1429/2020 e PL 2630/2020). Ver em <https://direitosnarede.org.br/2020/05/15/combate-a-desinformacao-requer-protecao-a-liberdade-de-expressao-e-amplo-debate-com-a-sociedade.html>

[4]     Comentário realizado por Carlos Affonso à Ana Pompeu, no Jota. Ver em <https://www.jota.info/coberturas-especiais/liberdade-de-expressao/entidades-e-empresas-veem-pl-anti-fake-news-como-um-risco-a-liberdade-de-expressao-29052020>

[5]     O El País realizou uma reportagem sobre a iniciativa que, em Maio de 2020, abriu uma conta no Twitter para iniciar a campanha de retirada de anúncios de portais eletrônicos produtores de desinformação e “notícias fraudulentas”. Ver em <https://brasil.elpais.com/icon/2020-05-17/o-homem-que-arruinou-a-extrema-direita-nos-eua.htm >.

[6]     Segundo a eMarketer, a Google e Facebook representaram, em 2018, 50% das receitas mundiais do setor de anúncios digitais. Ver em <https://www.emarketer.com/content/global-digital-ad-spending-2019J>.

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