Ao Fábio Venturini, sobre o “ato de Curitiba”

Por Valter Pomar (*)

O colega e companheiro Fábio Venturini escreveu um post (ver a íntegra ao final) em sua conta no facebook onde faz referência a minhas opiniões sobre o caso Renato Freitas.

Minhas opiniões podem ser lidas neste link: http://valterpomar.blogspot.com/2022/02/o-caso-renato-freitas.html

Venturini começa seu post citando Êxodo 3:5

Eu prefiro começar citando o Barão de Itararé: “tudo seria fácil se não fossem as dificuldades.”

A luta contra o racismo é parte da conjuntura brasileira.

Debater como enfrentar o racismo nunca será procurar “problema desnecessário”.

Por isto mesmo, considero necessário discordar novamente de algumas afirmações feitas por Venturini,

No meu texto, eu afirmei: “o protesto não foi contra a igreja, o protesto foi defronte a igreja, pelo simbolismo desta igreja para o movimento negro”; “não houve invasão, não houve interrupção de missa, nem houve intenção de atacar a igreja.”

Venturini afirma que “do ponto de vista jurídico e formal”, eu estou correto.

Mas insiste no seguinte: “esse ato, no entanto, foi muita coisa, menos formal. No cristianismo, seja católico ou protestante, o templo é um território sagrado no qual só se pode adentrar com determinados protocolos de respeito”.

Como diria Venturini, do ponto de vista “jurídico e formal” ele tem toda a razão.

Mas como sabemos todos os que estudam a história das religiões e das igrejas, a natureza “sagrada” e os “protocolos de respeito” não são cláusulas pétreas enviadas do céu junto com os dez mandamentos.

Sendo assim as coisas, não dá para tratar o acontecido no plano abstrato.

O ato foi político e politicamente deve ser analisado.

E neste plano eu não consigo desconsiderar nem desconhecer, em nenhum momento, o motivo justo da manifestação e o desconcerto causado pela provocação do diácono.

Evidente: olhando de longe, consigo perceber a provocação e a armadilha.

Mas dado o contexto, compreendo a reação dos manifestantes. E cá entre nós: entraram com respeito pela porta aberta, falaram e saíram, sem causar nenhum dano.

Venturini insiste no contrário: “as pessoas quando terminam a missa têm uma rotina, incluindo aconselhamento religioso. É um momento “santificado”, “consagrado”. Um ato político interrompeu essa liturgia”.

Isto pode ter acontecido? Pode. Mas – a julgar pelas imagens e pelos relatos – não havia ninguém se aconselhando ou se confessando no momento da entrada dos manifestantes.

Venturini acrescenta o seguinte: “se para mim e para Valter nada de mais ocorreu, para uma grande (muito grande mesmo) parte dos cristãos, um terreno sagrado foi invadido sem o devido respeito, a liturgia foi interrompida, o templo foi atacado. Houve um conjunto inadmissível de profanações. O ato político, com todas as boas intenções do mundo, gerou ofensa ao católico, a quem o protestante será solidário porque entende (não sem razão) que amanhã pode ser na sua igreja”.

Buenas, para Venturini pode ser que “nada de mais ocorreu”. Mas eu não disse isso, nem penso isso.

O que eu disse e penso é: não devemos aceitar a narrativa do bolsonarismo.

Os fatos são: não houve invasão, não houve interrupção de missa, não houve intenção de atacar a igreja.

Isto posto, pode-se e deve-se discutir a conveniência de ter entrado na igreja e tomar as medidas decorrentes.

Mas se as razões dos crentes devem ser consideradas, também devem ser consideradas as razões dos manifestantes.

O curioso é que Venturini trata com a maior seriedade e respeito o território sagrado do templo, mas na hora de falar dos motivos pelos quais os manifestantes escolheram fazer seu ato de protesto defronte da Igreja ele adota “uma forma muito menos simbólica e romântica”.

São dois pesos e duas medidas.

Veja a frase: “Se a manifestação na igreja se justifica por ter um valor para o movimento negro, poderiam ter escolhido qualquer outro lugar que denunciasse a violência e o racismo estrutural sem as afrontas a pessoas conservadoras e a valores religiosos criando tantos ruídos. O templo foi muito propício à lacração, para chocar, promover o manifestante, não a pauta da manifestação. É muito mais fácil fazer fervilhar os hormônios da luta e da bravura diante de padres e diáconos do que enfrentando marinheiros e milicianos”.

Buenas, neste ponto começo contando duas histórias.

A primeira foi ano passado, quando tive a oportunidade de ouvir o Renato Freitas contando sua história pessoal. Para resumir: Renato é um sobrevivente do genocídio. E sabe mais sobre violência cotidiana, inclusive de milicianos, do que eu e Venturini saberemos algum dia.

O que eu sei acerca da trajetória do Renato Freitas não o faz pior nem melhor do que ninguém, não torna corretas suas ações, mas me faz sugerir a Venturini – muito respeitosamente – que não use os termos “fervilhar os hormônios”, nem sugira falta de coragem para enfrentar milicianos. Realmente não se aplica ao caso em tela.

A segunda história é um pouco mais antiga.

Fui secretário de Cultura em Campinas (SP) de 2001 a 2004. Tínhamos ótima relação com o padre responsável pela Catedral e um dia fui lá visitar o local e ver como ajudar na captação de recursos para restaurar o prédio. Na visita, fui apresentado aos documentos da Catedral; segundo tais documentos, a construção da Catedral foi feita com “trabalhadores emprestados” de fazendas locais.

“Trabalhadores emprestados”, leia-se, escravizados.

Fazer atos nessas igrejas, em particular em igrejas como a do Rosário de São Benedito, me perdoe Venturini, não visa “lacração” alguma, não visa “chocar” ninguém.

Se Venturini acha importante respeitar a liturgia das igrejas cristãs, sugiro a ele também tratar com o devido respeito os motivos políticos e culturais dos integrantes dos movimentos negros.

“Poderiam ter escolhido qualquer outro lugar”, “sem afrontar pessoas conservadoras” e “sem criar tantos ruídos” são frases infelizes, do tipo: fiquem no seu lugar.

Portanto, vamos “dialogar com todo muito de forma respeitosa”. Mas vamos respeitar todo mundo. E respeitar não inclui aceitar, nem mesmo tacitamente, que tenha havido “invasão”.

O inadequado deste termo é uma velha discussão e que tenhamos de retomá-la neste episódio apenas demonstra o retrocesso ideológico que tomou conta, não só do país, mas também de uma parte dos setores supostamente progressistas.

Venturini afirma, também, que “o ato de Curitiba reforça tudo que a extrema direita diz do PT, e isso não é algo menor. A ação foi voluntariosa, sem inteligência e profundamente personalista, decidida por um pequeno grupo que implicou todo o partido”.

Bom, eu tenho muitas histórias para contar acerca de atos decididos por “pequenos grupos” que implicam “todo o partido”. Mas neste caso confesso não saber com base no que Venturini constrói sua “narrativa”.

O “ato de Curitiba” foi um protesto contra os assassinatos racistas. Converter este ato na “invasão da igreja” é exatamente o objetivo dos bolsonaristas. Não entendo porquê deveríamos fazer isso: além de ser mentira, seria uma burrice.

Por outro lado, para os “católicos ofendidos e os protestantes solidários” não devemos “explicar o inexplicável”, devemos contar a verdade.

Eles, como nós, compreendem perfeitamente a “ira dos justos”. O diácono fez uma provocação, os manifestantes caíram na provocação, entraram, falaram, saíram e pronto. Não houve nenhum dano, nada.

Algo muito diferente, por exemplo, do fato ocorrido no dia 21 de janeiro deste ano de 2022, lá mesmo em Curitiba, onde um diácono (!!) abençoou as armas de fogo da Guarda Municipal.

Mais detalhes podem ser lidos neste texto:

https://reinaldobessa.com.br/padre-julio-lancellotti-critica-rafael-greca-por-mandar-abencoar-armas-da-guarda-municipal-de-curitiba/

Convenhamos: “imagens de cartazes e bandeiras balançando entre o altar e os santos nas paredes” não querem mesmo dizer “nada demais” se comparado a abençoar armas de fogo.

O curioso é o seguinte: Venturini defende que devemos fazer uma “redução de danos”. Mas a maneira como ele pretende fazer isso é – ao menos em parte – assumindo a procedência das acusações contra nós.

Vejam por exemplo as seguintes frases: “Uma boa fakenews começa com imagens reais sustentando narrativas absurdas. Desde o ato em Curitiba, as montagens com Lula dizendo que vai fechar igrejas se espalharam em pletora. Ninguém precisou acusar-nos pelos atos alheios ou colocar camisa do partido em um sequestrador como fizeram no caso Abílio Diniz. Éramos nós, o PT, que estávamos lá através de um vereador”.

Éramos nós… fazendo o quê? Fechando igrejas??? A maneira como Venturini escreve conduz a este tipo de conclusão absurda.

Noutra frase Venturini diz assim: “Não se trata de repetir o que a direita diz, é ter que tratar agora da redução de danos. Envolve mostrar como a extrema direita vai se beneficiar com aquilo que facilitamos por um ato irresponsável”.

Ato irresponsável? Este jeito de falar não reduz danos, este jeito de falar amplia os danos. É como pedir desculpas pela mamadeira de piroca, como se ela existisse mesmo.

Repito: não sou a favor de silenciar diante de equívocos de ninguém (nem do Renato, nem de ninguém, nem os meus, nem os do Venturini, nem os do Lula). Mas não vou contribuir, nem direta nem indiretamente, para a criminalização de um protesto.

(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT

***

INTEGRA DO TEXTO CITADO

“E disse Deus: Não te aproximes daqui; tira as sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é uma terra santa”. Êxodo 3:5

Como a conjuntura brasileira está tranquila e simples, o que mais fazemos é procurar problemas desnecessários. Eu, por exemplo, fui comentar algo que não precisaria e agora estou aqui com textão para responder a um companheiro de partido.

Pela manhã postei que invadir igreja no contexto atual só poderia ser infiltração ou idiotice. Valter Pomar comentou colocando que ali tinha informações falsas. Além disso, por julgar que a mesma coisa poderia ser escrita de uma forma bem menos agressiva, deletei e postei outro texto, que segue:

“Apaguei o post anterior para detalhar melhor.

O Coletivo Núcleo Periférico, de Curitiba, fez uma manifestação contra o racismo e por justiça por Moïse Kabagambe e Durval Teófilo Filho, os dois assassinados no Rio de Janeiro, dentro da Igreja Nossa Senhora do Rosário, no Paraná. Entre os manifestantes, militantes do PCB e o vereador da capital, Renato Freitas (PT-PR).

Renato nega a invasão pois a igreja estava aberta e a missa já havia acabado. Ou seja, seria uma narrativa da extrema-direita.

Primeiro, para um fiel cristão (e aparentemente para a constituição federal também), o templo não é uma casa de shows que quando acaba um evento ele pode ser usado para qualquer outro fim. No cristianismo o templo é a “casa de Deus”.

O fim da missa não encerra a liturgia. Os encontros nas Comunidades Eclesiais de Base, por exemplo, eram políticos mas também obra de caridade cristã contra a carestia. Logo, não existe dentro de uma igreja a separação entre o político e o sagrado. Até os sacerdotes de extrema-direita acreditam estar respeitando essa mistura ao falar que combater a esquerda é combater Satanás.

O ato com bandeiras do coletivo, do PCB e do PT na igreja foi muito mal recebido entre católicos de esquerda porque violou solo sagrado. Os grupos de zap de cristãos de todas as cores e matizes estão pegando fogo e os progressistas estão constrangidos.

Esse é o efeito de um inferno cheio de boas intenções. Chame de narrativa ou não, foi uma ideia, digamos, dotada de pouquíssima inteligência, para ser generoso. Poderiam protestar na porta de um quartel da Marinha, mas escolheram uma igreja. Isso numa época em que pouca inteligência não ajuda em nada.

Nem tudo é culpa da extrema direita.”

O texto do Valter está aqui: https://valterpomar.blogspot.com/2022/02/o-caso-renato-freitas.html?fbclid=IwAR28C0LPNXftdPqP0dgevqZl3ODjZ_uJcSKqouY8JbFN9MV_UqZX2tEKcmM

Da crítica, pegarei dois pontos que entendi me envolverem diretamente, vamos a eles

PRIMEIRO, sobre os dados falsos

Valter afirma: “o protesto não foi contra a igreja, o protesto foi defronte a igreja, pelo simbolismo desta igreja para o movimento negro”. Ele acrescenta: “Os fatos são esses: não houve invasão, não houve interrupção de missa, nem houve intenção de atacar a igreja.”

Do ponto de vista jurídico e formal, Valter Pomar está correto, foi um ato defronte à igreja que adentrou depois do fim da missa. Esse ato, no entanto, foi muita coisa, menos formal. No cristianismo, seja católico ou protestante, o templo é um território sagrado no qual só se pode adentrar com determinados protocolos de respeito. Entrar e fazer uso da palavra, em qualquer situação, demanda procedimentos internos. Nem quem vai todos os domingos à missa pode simplesmente se levantar e ler uma mensagem de protesto, há espaços e momentos para tanto, não é logo após o amém.

As pessoas quando terminam a missa têm uma rotina, incluindo aconselhamento religioso. É um momento “santificado”, “consagrado”. Um ato político interrompeu essa liturgia. Além disso, na igreja católica as portas não são fechadas para acolher a quem precisa, não porque é um espaço público. Seja cerrar o templo ou criar condições para deixar pessoas desconfortáveis no seu interior são atos condenados em homilia pelo Papa Francisco.

Se para mim e para Valter nada de mais ocorreu, para uma grande (muito grande mesmo) parte dos cristãos, um terreno sagrado foi invadido sem o devido respeito, a liturgia foi interrompida, o templo foi atacado. Houve um conjunto inadmissível de profanações. O ato político, com todas as boas intenções do mundo, gerou ofensa ao católico, a quem o protestante será solidário porque entende (não sem razão) que amanhã pode ser na sua igreja.

Pomar entende ainda que minha afirmação de que “poderiam ter feito na porta de um quartel, mas escolheram uma igreja” significaria, no mínimo, não entender o sentido do local. Eu diria que entendo sim, mas de uma forma muito menos simbólica e romântica. Se a manifestação na igreja se justifica por ter um valor para o movimento negro, poderiam ter escolhido qualquer outro lugar que denunciasse a violência e o racismo estrutural sem as afrontas a pessoas conservadoras e a valores religiosos criando tantos ruídos. O templo foi muito propício à lacração, para chocar, promover o manifestante, não a pauta da manifestação. É muito mais fácil fazer fervilhar os hormônios da luta e da bravura diante de padres e diáconos do que enfrentando marinheiros e milicianos.

SEGUNDO: falta de solidariedade a Renato Freitas e servir de caixa de ressonância para a extrema direita

No último censo, de 2012, os cristãos no Brasil eram 86,8% da população brasileira, sendo 64,6% católicos e 22,2% evangélicos. O PT, para governar novamente o Brasil, deve dialogar com essa parte da população de forma respeitosa. Pela sua filiação e posição, Renato Freitas tem óbvia legitimidade política e partidária para seus atos de protesto. Se algo der errado, devemos a ele, como bem apontou Valter Pomar, solidariedade e defesa dos seus direitos, principalmente porque as perseguições aumentarão mesmo não tendo havido nenhuma ilegalidade. Isso não está em questão. Não significa, contudo, que essa solidariedade estabeleça termos em que o PT aceite ser entendido como um partido que ou invade ou tolera a invasão de igrejas.

Manifestações políticas normalmente têm uma agenda, um discurso, um argumento. Valter não precisa me convencer de que não houve invasão, juro no confessionário se precisar, é desnecessário. O ato de Curitiba reforça tudo que a extrema direita diz do PT, e isso não é algo menor. A ação foi voluntariosa, sem inteligência e profundamente personalista, decidida por um pequeno grupo que implicou todo o partido.  É para os católicos ofendidos e os protestantes solidários que precisamos explicar o inexplicável, dizer que as imagens de cartazes e bandeiras balançando entre o altar e os santos nas paredes não querem dizer nada demais.

Uma boa fakenews começa com imagens reais sustentando narrativas absurdas. Desde o ato em Curitiba, as montagens com Lula dizendo que vai fechar igrejas se espalharam em pletora. Ninguém precisou acusar-nos pelos atos alheios ou colocar camisa do partido em um sequestrador como fizeram no caso Abílio Diniz. Éramos nós, o PT, que estávamos lá através de um vereador. Não se trata de repetir o que a direita diz, é ter que tratar agora da redução de danos. Envolve mostrar como a extrema direita vai se beneficiar com aquilo que facilitamos por um ato irresponsável. A solidariedade ao companheiro é certamente combater a possibilidade de “cancelamento”, protegê-lo contra perseguições que, como muito bem apontou Valter Pomar, aumentarão. Mas a solidariedade não significa silenciar diante de um equívoco dessa monta. Não estamos falando de um adolescente, é um parlamentar do Partido dos Trabalhadores numa das capitais mais conservadoras do país.

Por fim, agradeço ao Valter Pomar, a quem nutro profundo respeito e admiração, tanto pela crítica quanto por poupar a citação direta que poderia me gerar inúmeros dissabores. Entendo que pela forma textual habitualmente cometo alguns excessos e tentarei corrigir. No mérito creio que coloco aqui divergências no intuito de ajudar o PT a avançar.

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