A questão de classe no Brasil e o papel histórico representado pela “classe média”

Varlindo Nascimento (*)

A divisão da sociedade em classes é um produto da grande indústria e da consequente consolidação do modo de produção capitalista. Antes disso, os grupos sociais eram definidos através de estamentos, condição que impedia a mobilidade entre um e outro grupo social, ou seja, quem nascia servo morria servo, quem nascia nobre morria nobre. O desenvolvimento dessa nova forma de funcionamento da sociedade causou uma desordem nos estamentos de modo a permitir a quebra dessa estrutura fechada de sociedade.

O capitalismo industrial produziu a divisão dessa sociedade entre a classe proprietária dos meios de produção, responsável pela exploração da mais-valia, e a classe vendedora da força de trabalho, explorada e alienada das etapas criativas do processo, restando-lhe a execução das atividades operativas e mecânicas.

Não é só a indústria que aparece como reflexo do desenvolvimento de um capitalismo originado do mercantilismo e da acumulação primitiva de capitais, o Estado Moderno também se configura como resultado dessa dinâmica. Neste sentido, o controle das formas de produção industrial passa a ter um conjunto de atividades técnicas e administrativas entre o capitalista e o operário, assim como, no âmbito do Estado, cria-se uma burocracia responsável por regular a dinâmica econômica e social. Como consequência disso surgirá uma camada intermediária de indivíduos nesses dois setores que ao longo do tempo será denominada de classe média.

Em seu livro “A classe média no espelho”, o sociólogo Jessé Souza traça um quadro da formação social do Brasil. Segundo ele, a partir da terceira década do século passado a história dessa formação começa a ser delineada academicamente com a fundação da Universidade de São Paulo (USP), para isso, figuras como a de Sérgio Buarque de Holanda vão ter um papel determinante na consolidação de determinados traços culturais ligados a uma índole naturalmente corrupta trazida de Portugal durante o processo de colonização, o que teria comprometido determinantemente os nossos traços comportamentais até a contemporaneidade. Jessé Souza é veementemente crítico a essa posição, trazendo a definição do dito “homem cordial” como um mito que na verdade contribui para esconder as mazelas sociais resultantes da base escravocrata que norteou a história do país até o início da República, sem que depois houvesse qualquer política de reparação aos danos causados por esse processo, legitimando as suas consequências históricas.

A base de relações calcadas nas formas de privilégios e o compadrio se refletem até hoje na conduta de uma classe média que se comporta como representante direta dos interesses da elite do país contra o seu próprio povo, chegando a ser, muitas vezes, vítima econômica da própria subserviência.

Para Jessé o traço que melhor define o pertencimento à classe média não está baseado no poderio econômico momentâneo, mas sim nas relações constituídas e na posse de uma gama de conhecimentos intelectuais que permitem a perpetuação geracional nos espaços de privilégio. Enquanto isso, o que ele chama de ralé vende a preços módicos seu tempo em busca da sobrevivência, ao passo que a classe média utiliza esse tempo comprado à relé para aperfeiçoar os mecanismos que lhe propiciam o bem-estar, como define o autor: “Nada é mais importante nem mais característico da classe média do que a valorização do conhecimento”.

Diante desse quadro a classe intermediária da sociedade adota um comportamento base no sentido de se opor a qualquer alternativa política que possibilite a emancipação dos mais pobres, tendo em vista a necessidade de proteção dos seus espaços de privilégio e sua reserva de mercado. Um exemplo da demonstração desse tipo de comportamento pode ser visto  no longa metragem “A que horas ela volta? ”, da cineasta Anna Muylaert, onde a filha da empregada consegue ser aprovada no vestibular ao mesmo tempo em que o filho da patroa é reprovado, mesmo com todos os acessos que seu privilégio de classe concede. O fato desencadeia uma crise no ambiente da família a partir da não aceitação da realidade por parte da mãe do rapaz, que é patroa da mãe da garota. Essa ficção retrata comportamentos cotidianos que são facilmente perceptíveis em cada “lar” de classe média, onde os e as empregadas devem procurar “saber qual o seu lugar” naquela sociedade, limitando-se a cumprir as suas tarefas e preservar seu subemprego.

Neste sentido, a classe média acaba cumprindo um papel de autoproteção, pois ela se vê ideologicamente como os de cima, a parcela ínfima de verdadeiros poderosos que controlam a economia, o aparelho de justiça, os mecanismos de disseminação da informação, o setor financeiro e etc., procurando se distanciar da camada de empobrecidos, mantendo-os nesta condição para baratear seu custo e conseguir comprar seu tempo e sua força de trabalho a preços módicos, mantendo as relações de exploração tal como são desde o início da história da formação social do Brasil.

(*) Varlindo Nascimento é militante petista em Recife- PE

 

REFERÊNCIAS:

SOUZA, J. A classe média no espelho (2018). São Paulo: Ed. Sextante. (Cap: a construção da classe média brasileira)

A que horas ela volta?. Direção: Anna Muylaert, Produção: Anna Muylaert; Caio Gulanne; Fabiano Gullane; Débora Ivanov. Brasil, 2015.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *