A Ofensiva Biden

Por Giorgio Romano Schutte (*)

O governo Biden representa uma tentativa organizada com início, meio e fim para simultaneamente revitalizar sua economia – sobretudo sua base industrial-tecnológica -, e enfrentar o desafio colocado pela ascensão chinesa. Ou seja, o sentido é garantir a reprodução da hegemonia dos Estados Unidos, e Biden entende que, para isso, é preciso uma reorganização da economia política nos próprios EUA. Não à toa em todas as suas falas faz questão de justificar as propostas de investimentos e gastos públicos trilionários com referência explícita à China.

Ou seja, está em curso uma tentativa de superar a lógica que dominou os EUA desde que Ronald Reagan iniciou, em 1980, a era neoliberal. Neoliberal não se confunde com capitalista: é uma forma de organização econômica e social do capitalismo, cujo objetivo central era diminuir a parcela da renda do trabalhador na renda nacional e assim aumentar a participação do capital em suas formas de lucros e rendas. Para isso, precisou romper o New Deal, o pacto entre capital e trabalho de Franklin Delano Roosevelt que estabeleceu uma relação entre aumento da produtividade e aumento dos salários.

Como pode ser visto na imagem, Reagan&Co foram bem sucedidos, os salários ficaram estagnados. Os números representam o crescimento em comparação com o ano base de 1948. Esse gráfico, aliás, foi publicado na insuspeita revista britânica The Ecomist, desde o século 19 porta-voz do liberalismo econômico em suas várias variantes.

Para que o neoliberalismo pudesse desconstruir o New Deal, o pacote incluiu ataques aos direitos trabalhistas e sindicais e redução das transferências sociais, tanto pelos governos republicanos quanto pelos democratas que governaram no período. Esse processo alimentou um constante aumento da concentração de renda e das desigualdades, que, durante um tempo, foram justificados pela ideologia neoliberal porque refletiria as diferenças de esforço individual. Margareth Thatcher defendia publicamente que a busca de maior igualdade seria danosa para a produtividade geral da economia.

Outro elemento central dos últimos 40 anos nos EUA foi a superposição da valorização do capital na esfera financeira acima da economia real, analisada por alguns por meio do conceito de financeirização e, por outros, caracterizado como capitalismo liderado pelas finanças (finance-led em inglês). Isso exigiu desregulação e abertura dos mercados financeiros, não só nos próprios EUA, mas no mundo todo. Nessa empreitada, os EUA tiveram no FMI um parceiro entusiasta.  Parte dessa abertura devia-se também ao aproveitamento da China como nova fronteira de expansão do capitalismo ocidental, liderado pelos EUA. Produtos manufaturados eram importados, mais barato, inclusive para compensar a falta de aumentos salariais nos próprios EUA (com o mesmo salário o trabalhador poderia comprar os produtos importados mais baratos).

Resumo da ópera neoliberal: isso tudo funcionou muito bem e deu sustentação a uma nova fase de expansão a partir de meados da década de 1980, até que a crise financeira de 2008 mostrou o acúmulo das contradições geradas por esse modelo. E exatamente quando começou a aparecer a fragilidade da hegemonia dos EUA surgiu a China como uma potência. A China integrou-se, sim, ao capitalismo global e foi funcional para os EUA nesse período, mas o país nunca teve a vocação de ser coadjuvante do capitalismo estadunidense e logo mostrou que tinha um projeto nacional de desenvolvimento soberano próprio. Sendo uma economia que subordina às finanças a economia real, ele não foi atingido pela crise de 2008 como os países do capitalismo avançado. Pelo contrário, surgiu mais fortalecido.

Os limites da hegemonia dos EUA apareceram também em outras frentes: o caos no Iraque depois da invasão em 2003 (com o surgimento do Estado Islâmico), as dificuldades no Afeganistão, uma Europa buscando cada vez mais seu próprio caminho, embora também com todas as suas contradições.  Nesse contexto, houve a eleição de Obama (2008), que perdeu uma oportunidade para provocar mudanças radicais.

Não obstante, falou em 2011 em um novo Sputnik moment, referência ao choque que rondou pelos EUA ao perceber, na década de 1950, que a União Soviética tinha supremacia na tecnologia espacial. Na época, os EUA reagiram com uma mobilização nacional que iria com o projeto Apollo levar o homem à lua, com o objetivo principal de mostrar ao mundo todo a liderança dos Estados Unidos. Obama sugeriu que agora o desafio era o avanço da China, não mais visto como território para produzir com mão de obra barata, mas como uma potência industrial-tecnológica soberana, com crescente dinamismo inovador.

Ou seja, faz dez anos que os EUA percebem que precisam de uma nova “revolução” para manter sua liderança e estancar o processo de decadência. Obama não avançou, Trump teve uma gestão atrapalhada, enquanto a China não ficou parada, inclusive tomando a liderança nas tecnologias para dar resposta ao desafio das Instabilidades Climáticas (chamados de Mudanças Climáticas), por exemplo, na eletrificação do transporte.

E aí chegamos de volta a Biden. Ele entende que o neoliberalismo foi longe demais, enfraqueceu a base industrial dos EUA. E, como afirmou publicamente, a nova Secretaria de Comércio: sem manufatura você fica vulnerável e limita muito sua capacidade de inovação (dica para o Brasil!). Ao mesmo tempo, Biden reconheceu que as desigualdades aumentaram demais, gerando tensões sociais e raciais. Um país dividido não poderia responder ao desafio da China.

A forte busca de coesão social com planos trilionários para políticas sociais refletem esse entendimento. São funcionais para a Ofensiva. Biden é um velho politico, nunca foi socialista, nunca chegou e nunca chegará perto. Ao contrário, foi do establishment do Partido Democrata, apoiou as políticas de austeridade fiscal e aplaudiu quando Bill Clinton declarou, na década de 1990, que a época do “governo grande” tinha acabado. Mas agora a velha raposa entendeu que precisa mudar, para deixar tudo igual. O “igual” se refere à hegemonia e liderança dos EUA. Não pode haver nenhuma dúvida e não cabe tentar minimizar a abrangência dessa Ofensiva, mas esta deve ser entendida no seu contexto.

Falamos até agora em “tentativa”, ou seja, nada garante que Biden vai conseguir atingir seus objetivos. Quais os obstáculos e desafios? Muitos! O primeiro era superar a Covid-19. Prometeu resolver isso rápido e logo foi atropelado pela variante Delta. Pior, descobriu que a sociedade estadunidense já estava mais podre do que ele poderia imaginar: cerca de 100 milhões de pessoas se recusam a tomar vacina, sobretudo nos estados do sul, onde o trumpismo continua firme a forte.

Em seguida, ele precisava ampliar sua base social e política para avançar rapidamente com seus três Planos que devem sustentar a Ofensiva. O primeiro, de recuperação (US$ 1,9 trilhão), foi aprovado em março deste ano. No caso do segundo, “Plano para Infraestrutura e Emprego” (Infrastructure Investment and Jobs Act), este passou com US$ 1 trilhão no Senado e está parado no Congresso. De qualquer forma, é menos da metade do que o Biden tinha pedido. Nesse caso, porém, há apoio de alguns republicanos e dos democratas de direita.

O pepino está em seu Plano para as Famílias (The American Families Plan), que está tramitando com uma proposta de US$ 3,5 trilhões em gastos sociais para serem executados ao longo dos próximos dez anos. A direita do próprio Partido Democrata quer cortar para US$ 2,3 trilhões. Tendo uma maioria muito estreita, Biden é refém dos que continuam defendo as pautas neoliberais em seu próprio partido.

Quanto à base social: sim, essas propostas mobilizam sindicatos, movimentos e organizações sociais, mas de outro lado há campanhas com mais dinheiro dos empresários contrários. Estes falam em risco de forte aumento da inflação, descontrole dos gastos e da dívida pública, a ameaça de um Estado grande demais, etc etc (argumentos bem familiares para o leitor). Isso mostra que o neoliberalismo está muito forte ainda em vários setores. Além desses grupos empresariais, há a oposição de Trump, que retomou seus comícios eleitorais fora da época, mas com grande audiência atacando qualquer proposta do governo Biden.

Os vários planos que devem garantir o rejuvenescimento do capitalismo estadunidense

Lei Federal Situação Investimentos
Plano Americano de Recuperação

 

Aprovado Março 2021 US$ 1,9 trilhão
Plano para Infraestrutura e Emprego

 

Aprovado no Senado em Agosto 2021

Em discussão na Câmara

 

US$ 1 trilhão

Plano para as Famílias Em discussão no Congresso US$ 3,5 trilhões

 

Resumo do apoio interno à Ofensiva Biden: não conseguiu aproveitar da sua vitória para gerar um movimento amplo de mudanças como Roosevelt havia conseguido na década de 1930 em torno do New Deal. E se ele não ganhar as eleições para o Congresso em meados do ano que vem, ou seja, se ele perder a maioria, o risco da Ofensiva murchar rapidamente é grande.

Terceiro obstáculo: para a Ofensiva vingar no seu objetivo de conter a China é preciso enquadrar os aliados. Para isso, Biden começou logo a mostrar uma política externa mais focada e mais agressiva. No início de seu mandato deixou claro que pretendia turbinar a aliança informal militar chamada Quad, envolvendo EUA, Índia, Japão e Austrália. Mas, recentemente, lançou o Aukus, que junta os EUA com o Reino Unido e a Austrália em torno de tecnologias militares, em particular de submarinos de propulsão nuclear, para projetar poder militar no Indo-Pacífico (adivinhem para intimidar quem?).

De outro lado, conclui a retirada do Afeganistão e diminui muito o compromisso com o Oriente Médio, uma vez que a exploração de xisto tornou os EUA praticamente autosuficientes em petróleo (a dependência de importação de petróleo era 70% do consumo nos EUA quando Bush Jr resolveu invadir o Iraque em 2003!).

Biden tem mais dificuldades para (re)enquadrar os aliados na Europa. Durante o governo Trump, a posição daqueles que buscam maior autonomia no Velho Continente, por exemplo, para negociações diretas (sem envolver os EUA) com a Rússia e a China. Biden procurou desde o início uma nova relação, inclusive fortalecendo a posição da OTAN. Mas ele encontra desconfiança, inclusive porque não se sabe a quão duradoura será essa nova política dos EUA.

Além disso, muitos suspeitam que os EUA querem uma Europa o forte suficiente para ajudar na contenção da China, mas o fraco o suficiente para não atrapalhar os interesses americanos. E aí veio o caos na retirada de Kabul, ao final de agosto passado. A pedido dos EUA, vinte anos atrás, a invasão foi da OTAN, ou seja, havia tropas de muitos países europeus. A decisão e a forma de retirada dos EUA deixaram muitos países europeus de calça curta e foram obrigados sair rapidamente também. O caos pegou mal na opinião pública europeia, e vários ministros de relações exteriores ou de defesa caíram nos debates nos congressos, inclusive no Reino Unido. Ou seja, não é tão fácil returbinar o eixo atlântico como fortaleza de contenção à influência Chinesa e a seu principal parceiro, a Rússia.

Quarto, um desafio mais complexo ainda é a necessidade de enquadrar o capital e colocá-lo novamente em função do um projeto de dominação liderado pelos EUA. A Ofensiva Biden pode ser entendida como uma política de intervenção estatal para enquadrar interesses particulares de curto prazo de grupos de capital em função dos interesses gerais do capitalismo no longo prazo. Isso não é tão fácil, porque os EUA não dispõem dos instrumentos que a China tem para disciplinar o capital.

Por exemplo, na década de 1950 surgiu o ditado “o que é bom para GM, é bom para os EUA” e vice-versa. Era a fala durante a sabatina no Senado do ex-presidente-diretor da GM que havia assumido o Ministério da Defesa no governo Eisenhower. Isso foi verdade durante décadas, mas não é mais tanto assim. O interesse da GM é investir na China, estar presente no gigante e crescente mercado chinês. Produzir na China para vender para China. Mais do que isso: participar do ambiente dinâmico de inovação, nesse caso em torno da tecnologia do carro elétrico.

Trump e Biden, cada um de seu jeito, colocaram-se o desafio de convencer essas empresas a diminuir sua exposição na China e aumentar seus investimentos nos EUA. Grande parte das propostas de Biden têm a ver com isso. Para reconstruir uma forte base industrial-tecnológica e recuperar a manufatura nos EUA é preciso colaboração das empresas.

Os investimentos bilionários em modernização da rede elétrica, da banda larga, infraestrutura para recarga de veículos elétricos, uma nova política industrial, política de conteúdo local (Buy American), isso tudo tem como objetivo provocar um aumento da formação bruta de capital fixo. Ou seja, é evidente que Biden não vai declarar guerra total ao capital financeiro, mas ele entende que é preciso diminuir o peso dessa lógica e favorecer investimentos na economia real nos EUA. Nada fácil. Inclusive há muitas frentes ao mesmo tempo: o capital financeiro querendo se opor à nova taxação e restrições (embora muito modestas), por exemplo, à liberdade de operar em paraísos fiscais, entre outras; as grandes empresas produtivas com fortes interesses em investir na China; e, ainda, a política antimonopólio que envolve enfrentar o Facebook, o Google etc.

O último desafio para a Ofensiva Biden a ser tratado aqui: a questão da pressão migratória. Os investimentos públicos e as outras medidas para turbinar a economia dos EUA em um momento de saída da pandemia (embora mais lentamente do que Biden  havia previsto) geram milhões de empregos. A taxa de desemprego está abaixo de 5% e há falta de mão de obra em vários setores. Logo, quando Biden enfatiza que o objetivo dele é gerar “Jobs, Jobs, Jobs!”, isso é entendido como uma enorme oportunidade por centenas de milhares de pessoas sem perspectiva vivendo na miséria nos países centro-americanos e também sul-americanos, inclusive o Brasil.

Aí podemos ver a contradição entre as políticas de inclusão que visam coesão social para tornar o capitalismo estadunidense mais resiliente de um lado e o total descaso com a miséria e a falta de perspectiva de outro lado do El Paso. Biden não sabe como lidar com o crescente fluxo de migrantes e acabou mobilizando métodos e legislação que lembram o governo Trump. As promessas de Biden de aumentar a cooperação para o desenvolvimento nessas regiões são, por enquanto, vagas.

Nessa política ele é criticado pela esquerda (que quer políticas mais humanitárias) e pela direita (que quer uma postura mais dura). Esse problema tende a crescer exatamente em função da sua política. Um efeito colateral não previsto, mas muito real e dramático.

Ficou claro que a tentativa de superar o neoliberalismo não vem do coração de Biden, mas de uma opção racional como condição para rejuvenescer o capitalismo estadunidense, garantir a reprodução da sua hegemonia e conter a ascensão chinesa. Ele inclusive vai muito além da questão de uma suposta concorrência desleal por parte da China (a narrativa do Trump), e traduz a disputa em termos ideológicos: um confronto entre as democracias e as autocracias. E isso é perigoso para a paz mundial.

Para terminar: e o Brasil com isso? Por enquanto, a América do Sul continua com baixa prioridade, mas superado o processo de tramitação dos dois planos trilionários e as eleições legislativas em meados do ano que vem, deve ganhar mais força o movimento de dar certa prioridade à América do Sul na Ofensiva para limitar a influência chinesa, real ou percebida. Por enquanto, a pauta com a América-Latina para Biden é a migração.

Embora longe de ser uma prioridade, surgiu nos EUA a ideia de que ficaram dormindo no ponto, enquanto a China avançava, tornando-se um dos principais parceiros comerciais de praticamente todos os países latino-americanos e, em muitos casos, como no Brasil, o principal. Mais do que isso, os bancos e fundos estatais chineses já financiam mais projetos na região que as tradicionais instituições de crédito público, como o BID ou o Banco Mundial. E se isso não bastasse houve uma onda de investimentos produtivos chineses, tanto de estatais como de empresas privadas.

E isso tudo em uma região quer era considerada o quintal dos EUA. Atenção redobrada para a Venezuela, país no qual a influência chinesa (e russa) aumentou proporcionalmente à agressão exercitada pelos governos estadunidenses. Em abril 2022 há eleições na Colômbia, e o candidato de esquerda está muito bem-posicionado. A Colômbia é o grande aliado estratégico militar e contrapeso à Venezuela na região. Logo, começa a piscar a luz amarela.

A princípio, a Ofensiva Biden consegue conviver com qualquer governo no Brasil desde que este não atrapalhe seus objetivos estratégicos. É muito provável que a operação Michel Temer para conter o Bolsonaro e evitar a crise institucional tenha sido vista com bons olhos em Washington, para dizer o mínimo. E não há dúvida de que haja um monitoramento das falas de Lula. Isso tudo, evidentemente, sem prejuízo para a defesa de interesse pontual que sempre há, como da Exxon no pré-sal ou das empresas americanas na base de Alcântara etc.

Outra coisa é o impacto nos fluxos de investimentos e financeiros que afetam os preços macro-econômicos (juros, câmbio) no Brasil refletindo o êxito ou problemas na implementação das políticas concretas que sustentam a Ofensiva. Por exemplo, caso Biden, ou melhor o FED (banco central dos EUA),  seja obrigado a aumentar os juros diante do aumento da inflação, isso terá um impacto grande sobre o Brasil.

Agora, na esfera das ideias, Biden nos dá munição. Afinal, por que ele pode fazer investimentos na área social, política industrial-tecnológica, ampliar os direitos sindicais, política de conteúdo local, usar compras governamentais para fomentar renda e emprego no país, etc etc, por que não podemos aqui? Isso não significar ter ilusões a respeito dos objetivos da Ofensiva Biden, mas aproveitar os novos ventos.

(*) Giorgio Romano Schutte, professor de Relações Internacionais e Economia da Universidade Federal do ABC, membro do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (OPEB) e do Observatório da Economia Contemporânea. Autor do livro “Oásis para o capital. Solo fértil para a corrida de ouro. A dinâmica dos investimentos produtivos chineses no Brasil”.


(**) Textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da tendência Articulação de Esquerda ou do Página 13.

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