A “marolinha” do estadista, a “gripezinha” do moleque

Por Alexandre Santos de Moraes (*)

Diferentemente dos inocentes que ainda alimentam fantasias, é preciso lembrar que o capitalismo depende do colapso. Quase ninguém escapa. Os pobres vivem esse colapso diariamente; os ricos, periodicamente, sobretudo quando brota uma crise que derruba as bolsas ou atrapalha o crescimento virtuoso de seus empreendimentos. Quando chega esse momento – e ele sempre chega, mais cedo ou mais tarde! – redescobre-se por milagre a importância do mesmo Estado que ignoram em tempos regulares.

Todas as cartilhas neoliberais se tornam defasadas. Todas as teorias de que esses pulhas se alimentam parecem inúteis. De repente, percebem que a economia depende de quem labuta. Buscaram construir o mundo do trabalho sem os trabalhadores e agora se veem reféns da destruição que financiaram. O governo se tornou imprescindível e Bolsonaro, que teve o azar de ser eleito, foi convocado a se manifestar.

Na retórica da crise, o atual presidente mostrou que ainda balbucia as primeiras palavras. Como criança em busca de referência para aprender a língua nativa, olhou para o passado recente e viu a figura de Lula, o fantasma que parece atazaná-lo todos os dias. Em 2008, o governo do PT enfrentou uma grave crise global. Ficou famosa a declaração do então presidente que, em outubro do mesmo ano, disse que o tsunami lá de fora chegaria como “marolinha” no Brasil.

Jair Bolsonaro, perdido qual cego em tiroteio, deve ter se inspirado nesse exemplo e decidiu sustentar que o COVID-19 seria não mais que uma “gripezinha”. O problema é que a semelhança fica apenas na superfície do discurso, não apenas porque as crises são estruturalmente diferentes, mas porque o gigantismo de Lula é o perfeito oposto do nanismo político de Bolsonaro.

Para refrescar a memória, a crise financeira de 2007-2008 foi provocada pela quebra do tradicional banco norte-americano Lehman Brothers. Mais uma vez, o Estado foi convocado a servir de muleta para os capitalistas. Para minimizar os efeitos da quebradeira, os Estados Unidos reestatizaram agências de crédito imobiliário para injetar 200 bilhões de dólares na economia. O “efeito dominó” fez a Europa se mobilizar também, e estima-se que foram propostos pacotes de quase 2 trilhões de euros. Os analistas de então falavam que essa era a pior crise do capitalismo após a Depressão de 1929.

No Brasil, a bolsa acumulou quedas sucessivas e o governo agiu para manter a liquidez. A declaração de que se tratava de uma “marolinha” foi extremamente mal recebida, e até mesmo a Executiva do PT, através da voz de Ricardo Berzoini, afirmou que teria consequências visíveis em nossa economia. Fernando Henrique Cardoso, que sai do calabouço nos momentos críticos, foi uma das vozes mais agudas contra essa declaração.

Dá-se, porém, que o Partido dos Trabalhadores jamais negou a importância do Estado. A solução de Lula foi estimular o consumo interno, pedir que as pessoas mantivessem seu padrão de vida e pagassem as dívidas. Criticou publicamente o receituário do FMI e investiu confiança nos trabalhadores e trabalhadoras. De fato, o Brasil não ficou imune à crise, mas a recuperação foi tão rápida quanto a queda. Em 2009, a taxa de desemprego ficou em 7,5%, a balança comercial teve saldo positivo de U$ 24,615 bilhões e a cotação do dólar estava em R$ 1,741. Houve recessão, mas o país demonstrou capacidade de reagir porque tinha um adulto no Palácio do Planalto.

Muitos discutem se foi, ou não, uma marolinha, mas a retórica de Lula não foi bravata, e sim uma tentativa de acalmar os mercados sem se esquivar da responsabilidade que tinha com os trabalhadores. O governo do PT reduziu impostos de automóveis e eletrodomésticos, manteve o aumento real do salário mínimo, ampliou os investimentos públicos, sustentou as políticas de transferência condicionada de renda conforme o planejado, utilizou os grandes bancos estatais para oferecer linhas de crédito com taxas de juros menores, manteve o repasse de verbas para estados e municípios e aumentou não apenas o tempo de vigência, mas o valor do seguro-desemprego. Retórica sem prática é discurso vazio, e prática é critério de verdade.

É precisamente por isso que Jair Bolsonaro pode até repetir a estratégia discursiva, mas fracassa vergonhosamente e vê o poder com que tanto se masturba escorrer pelo ralo. Lula minimizou a crise global e trabalhou para minimizá-la; Jair minimiza a crise global e trabalha para ampliá-la. Isso acontece porque se tornou refém dos ataques aos trabalhadores. Além de aprofundar a reforma trabalhista de Temer, lutou para emplacar uma cruel Reforma da Previdência. Mais do que isso, em típico estelionato eleitoral, suprimiu o repasse do bolsa-família que, na época da campanha, se comprometeu em manter.

Sob a batuta de Paulo Guedes, dedicou todos os esforços aos empresários e hoje se vê diante da triste constatação de que não há economia sem os trabalhadores. Acuado, notou que ninguém respeita seu governo: Weintraub manda as escolas retornarem, mas elas não retornam; Mandetta relativiza o distanciamento social, mas o povo está amedrontado; os generais que tanto bajulou para comprar a lealdade defendem o aquartelamento das tropas; os governadores se unem para fazer uso de suas prerrogativas e isolar o presidente; Rodrigo Maia, notório adepto do parlamentarismo, aproveita o tsunami e surfa com perícia na anomia do Executivo.

Sem recursos e enfraquecido, Bolsonaro dobra a aposta e apela para as necessidades materiais. Ciente de sua própria incapacidade de gerir a crise, transfere a responsabilidade para a população através da falsa distinção entre se salvar do coronavírus/salvar a economia. O governo tenta colocar o povo entre a cruz e a caldeirinha: se sai de casa, contrai o vírus que, apesar das milhares de mortes já contabilizadas, segue tratando como “gripezinha”; se permanece em reclusão, cuidando da própria saúde, morre de fome.

Em outras palavras, a ação do governo se pauta pela inação. Comporta-se como criança que não fez o dever de casa e tenta convencer o professor que seu cachorro voraz desenvolveu súbito apetite por papel. Ciente de que o apoio de 200 reais proposto por Paulo Guedes não seria suficiente, Bolsonaro optou por manter a lealdade com banqueiros e empresários. Não pode, é verdade, ser acusado de incoerência: se já não governava para o povo antes, não é com a pandemia que irá fazê-lo.

No momento em que os Estados assumem papel decisivo em cenário global para resguardar tanto a vida como a economia, propondo transferências de renda para acudir os trabalhadores, Bolsonaro transforma a precarização em um fato quase que da natureza e lava as próprias mãos com o álcool em gel que sumiu das prateleiras. A despeito do resultado, seu governo fracassou. Viu diante de si uma marolinha e fez questão de provocar um tsunami. Olhou para trás, viu a retórica de Lula, buscou copiá-la e fracassou grosseiramente. Discurso sem prática não é discurso: é bravata.

Bolsonaro tentou ser Lula e terminou sendo ele mesmo, um sujeito sem passado, sem presente e sem futuro, um câncer em nossa história que terá sua imagem representada atrás dos corpos mortos que deixou para trás em seu descompromisso com o povo. Bolsonaro não ficará na “lixeira” da História, mas no lixo hospitalar, lacrado, fechado, para evitar o contágio, igual aos mortos pelo coronavírus que ele poderia ter evitado se soubesse para que serve um presidente. Poderia ter se inspirado em Lula, mas falta-lhe competência e caráter para isso.

(*) Alexandre Santos de Moraes é professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: asmoraes@gmail.com.

(**) Os textos assinados não necessariamente refletem a opinião do Página 13.

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