A estranha afinidade entre o chanceler Araújo e um texto publicado na página do PT

Por Valter Pomar

No dia 18 de abril, a página do PT publicou um texto intitulado “Manifesto do PT: a crise institucional e o resultado do golpismo”.

Depois o texto sofreu uma alteração no título: de “Manifesto”, virou “Carta de Lula, Gleisi, Humberto e Pimenta”.

Mas o conteúdo, até onde pude perceber, continua o mesmo.

A ideia central do texto é que o Brasil vive uma “gravíssima crise política e institucional”, em cuja raiz está “o movimento golpista”.

O texto trata das “divergências políticas, corporativas e até pessoais” entre os diferentes setores do golpismo, lembrando que alguns dos que hoje reclamam de excessos, não tiveram dúvida de praticar atropelos quando se tratou de atacar o PT.

Na mesma linha, o texto esclarece que “a anarquia institucional em que vive o país não é obra exclusiva de Jair Bolsonaro”. Acusa explicitamente “os donos da fortuna, os rentistas, latifundiários, representantes de interesses estrangeiros; os reacionários, preconceituosos e fundamentalistas” como responsáveis pela “tragédia nacional”. E conclui dizendo que o “PT está pronto para reconstruir, junto com o povo e com todas as forças democráticas, um Brasil melhor e mais justo”.

Enfim, um texto politicamente correto, exceto por alguns “detalhes”.

O primeiro “detalhe” é a seguinte afirmação: “para tirar o PT do governo, a Constituição foi rasgada à luz do dia, rompendo o pacto nacional de 1988 que deu fim à ditadura e restaurou a democracia”.

Entre os democratas, esta afirmação é praticamente uma unanimidade. Mas ela mistura duas afirmações diferentes, a primeira delas correta, a segunda nem tanto.

A afirmação correta é que os golpistas desrespeitaram a Constituição. Aliás, se assim não fosse, não poderiam ser acusados de golpistas.

A afirmação que não é tão correta assim é a de que teria havido um “pacto nacional” em 1988. Não houve não. Nem o PT participou dele (por exemplo, não votamos a favor da redação final da Constituição de 1988), nem a direita participou dele (Sarney, por exemplo, dizia que a Constituição deixara o Brasil ingovernável).

O curioso é que uma parte da esquerda, mesmo não tendo participado do pacto, passou a dizer e acreditar que houve um. Crença que está na base de parte das ilusões republicanas ainda tão fortes tanto no PT quanto em outros setores da esquerda brasileira.

O segundo “detalhe” é a afirmação de que o PT “nasceu há quase 40 anos”, “atuando sempre dentro da lei”. Isto não é exatamente verdade.

Para ficar no óbvio, o PT surgiu em plena ditadura. Época em que os democratas tinham a necessidade de agir “fora da lei” em diversas circunstâncias.

Generalizando: em épocas de exceção, não existe sinal de igual entre “defender a democracia” e “defender a normalidade institucional”. Pelo contrário, em épocas de exceção, defender as liberdades geralmente significa necessariamente atacar determinadas instituições, pelo menos aquelas responsáveis por transformar a exceção em “estado de direito”.

O terceiro “detalhe” é a afirmação de que o “PT nunca defendeu, nunca praticou e jamais defenderá a censura, nem mesmo contra nossos mais mentirosos detratores”.

As duas primeiras afirmações são corretas: nunca defendemos e nunca praticamos. A terceira afirmação é uma promessa ingênua, baseada na confusão entre liberdade de imprensa e liberdade de empresa. Uma coisa é impedir uma ideia de circular. Outra coisa é impedir um monopólio midiático de difundir mentiras. A confusão entre as duas coisas está na origem daquela frase célebre segundo a qual o único controle aceitável seria o remoto.

O quarto “detalhe” é a seguinte afirmação: “se nos últimos anos as instituições tivessem defendido a lei simplesmente, sem temores pessoais nem condicionamentos políticos, as forças do arbítrio e da violência não teriam chegado onde chegaram”. O erro desta afirmação está em acreditar na neutralidade do Estado.

As “instituições” sempre atuam com base em “condicionamentos políticos”. Quem não percebe isso, quem não age conscientemente para “condicionar politicamente” as instituições do Estado, será vítima destas mesmas instituições, que agirão condicionadas pelos outros e pelos de sempre. Que “simplesmente” interpretarão as leis a seu modo.

O quinto e último “detalhe” está, talvez, na origem dos demais.

Segundo o texto, “a história tem muitos exemplos da tragédia em que vivemos, no Brasil em outros países em que, em determinados momentos, o estado de direito foi subjugado pela perseguição política sob qualquer pretexto. Foi assim com o Terror na França, com a ascensão do fascismo na Itália, do nazismo na Alemanha, do macarthismo nos Estados Unidos, das ditaduras na América Latina”.

Não sei se os signatários do texto refletiram detidamente sobre a barbaridade do que assinaram no parágrafo acima. Colocaram no mesmo saco as ditaduras, o macarthismo, o nazismo e o fascismo… e o “Terror” revolucionário da Grande Revolução Francesa.

Está no texto: no “Terror na França” e no nazismo, o estado de direito teria sido “subjugado pela perseguição política sob qualquer pretexto”.

Comparar o “Terror” revolucionário da Grande Revolução Francesa com o nazismo não é apenas um grave equívoco histórico. Trata-se da adesão a uma concepção ultraliberal acerca do que seria o tal “estado de direito”.

Além de no fundo ser – como observou o companheiro Leandro Eliel – no fundo a mesma posição do chanceler Araújo, para quem a Revolução Francesa foi desvirtuada pelos jacobinos, por exemplo quando estes decapitaram o rei.

Na vida real, na história real, a luta faz a lei. Quem acha que o “estado de direito” é produto do “diálogo”, será sempre surpreendido pelos inimigos. Como nós fomos aqui no Brasil.

Fora estes “detalhes”, o texto assinado pelos líderes, presidenta e presidente de honra é politicamente correto.

Quem quiser ler o texto na página eletrônica do PT: https://lula.com.br/manifesto-do-pt-a-crise-institucional-e-o-resultado-do-golpismo/

Quem quiser ler sobre a Revolução Francesa de 1789 e o Terror, pode ler no endereço abaixo o livro Ecos da Marselhesa, de Eric Hobsbawn, livro que também devemos a professora Maria Célia Paoli, recém-falecida e a quem aproveito para prestar homenagem:

http://www.bancariosma.org.br/formacao/arquivos/LIVRO%20-%20HOBSBAWM,%20Eric%20J.%20Hobsbawm%20-%20Ecos%20da%20marselhesa.pdf

E quem quiser ler o que diz o chanceler Araújo sobre a revolução francesa, vá nas páginas 340 e 341 do revista disponível no endereço abaixo:

http://funag.gov.br/biblioteca/download/CADERNOS-DO-IPRI-N-6.pdf

 

Artigo publicado no Blog do Valter Pomar, em 22/4/19

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