A esquerda que sabe quem é: resposta a Eliane Brum

Por Valter Pomar

No dia 19 de dezembro de 2018, El País publicou um artigo intitulado “A esquerda que não sabe quem é”, assinado pela escritora, repórter e documentarista Eliane Brum.

Concordo com Eliane Brum, no que diz respeito à necessidade da oposição a Bolsonaro se mover “com consistência, estratégia e propósito”. Mas discordo de quase todo o resto do que é dito, pelos motivos expostos a seguir.

Antes, um comentário: reagir não é suficiente, mas reagir é muito importante. A ausência de reação, especialmente frente a governos como o de Bolsonaro, não é apenas um erro tático ou estratégico, é uma indecência moral.

Voltando ao texto da Eliane Brum: ela começa afirmando que “a esquerda foi demonizada pela turma do Bolsonaro, do MBL (Movimento Brasil Livre), do Olavo de Carvalho e outras. Para uma parte da população, virou tudo o que não presta, seja lá o que for. Às vezes esquerda e comunismo e marxismo viram uma coisa só no discurso repetitivo e feito para a repetição. E essa coisa que viram pode ser qualquer coisa que alguém diz que é ruim. A reação daqueles que se identificam com a esquerda é acusar os que estimulam esse desentendimento, aqui no sentido de não entender mesmo do que tratam os conceitos, de manipuladores e de desonestos. E com frequência é isso mesmo que são. Mas se fosse só isso seria mais fácil”.

E?

E “o problema é que está muito difícil saber o que a esquerda é. E o que a esquerda propõe que seja claramente diferente da direita. O PT se corrompeu no poder. É um fato. Pode se discutir bastante se o PT é um partido de esquerda. Eu, pessoalmente, acho que foi de esquerda só até a Carta ao Povo Brasileiro, durante a campanha de 2002. Outros encontram marcos anteriores de rompimento com um ideário de esquerda”.

Reproduzi na íntegra os dois parágrafos de Eliane Brum ( o texto completo pode ser acessado no endereço: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/19/opinion/1545240940_077902.html ) porque eles são ilustrativos de um “jeito de pensar” que começa criticando com ressalvas a direita — que “com frequência” seria mesmo manipuladora e desonesta — para terminar criticando a esquerda, muitas vezes sem ressalvas, mais especificamente criticando o PT “que se corrompeu no poder”.

E a direita? E os ataques que Bolsonaro já está fazendo? Deduzo que vale aqui o que já foi explicado no início por Brum, a saber, que não bastaria reagir, é preciso “consistência, estratégia e propósito” e, para isto seria preciso fazer a famosa autocrítica. Que, como está implícito, inclui aceitar que “com frequência” a direita é manipuladora e desonesta, “mas se fosse só isso seria mais fácil”, ou seja, parte do que a direita diz seria verdade ou, pelo menos, teria algum fundo de verdade.

Será mesmo?

Segundo Brum, “o problema é que está muito difícil saber o que a esquerda é. E o que a esquerda propõe que seja claramente diferente da direita”.

Brum acha isso. Mas a direita acha isso?

Direita e esquerda são termos que têm uma longa história, e volta e meia há batalhas teóricas e políticas acerca de como devem ser conceituados.

No que me diz respeito, tratam-se de termos relacionados entre si, não apenas conceitualmente, mas na luta política e social real.

E neste terreno – o da realidade atual, no Brasil desta virada de ano de 2018 para 2019 – talvez o melhor jeito de descobrir quem é a esquerda, seja olhando quem é o alvo principal dos ataques de Bolsonaro, do MBL e de Olavo de Carvalho.

Brum obviamente não concorda com este critério, pois já que para ela “o PT se corrompeu no poder. É um fato. Pode se discutir bastante se o PT é um partido de esquerda. Eu, pessoalmente, acho que foi de esquerda só até a Carta ao Povo Brasileiro, durante a campanha de 2002. Outros encontram marcos anteriores de rompimento com um ideário de esquerda”.

Voltaremos ao tema da “corrupção” logo a seguir. Antes, um comentário: eu sou do PT desde os anos 1980. Era do Diretório Nacional do PT em 2002. Votei contra a aprovação da Carta ao Povo Brasileiro. Achava e continuo achando que foi um erro, que nos custou muito caro. Esclarecido este detalhe pessoal, não concordo com a opinião de Brum, por dois motivos, um menos e outro mais importante.

O motivo menos importante é que a Carta ao Povo Brasileiro não substituiu o “ideário” socialista do PT por um ideário “social-liberal”. A aprovação daquela Carta, pelo voto da maioria do Diretório Nacional do PT em 2002, reforçou elementos social-liberais que já vinham se mesclando ao ideário socialista do PT, desde pelo menos 1995. Mas não houve substituição, ou seja, do ponto de vista ideológico o PT não se converteu num partido de centro-esquerda ou de centro.

O motivo mais importante é que o critério para considerar se alguém é ou não de esquerda não pode ser apenas o “ideário”. Pois se fosse assim, os únicos partidos de esquerda realmente de esquerda seriam os de laboratório, aqueles que não precisam enfrentar as contradições da vida real, fazer concessões, fazer acordos, negociar soluções intermediárias.

Em minha opinião, é preciso incluir na balança outro critério, o da prática. No caso, é preciso perguntar: os governos Lula e Dilma contribuíram para melhorar ou para piorar a vida da imensa maioria do povo? Pois no limite é isso que faz alguém ser ou não ser de esquerda, não do meu ponto de vista, não do ponto de vista de Brum, mas do único ponto de vista que pode ser decisivo nesta polêmica, a saber: o ponto de vista das classes trabalhadoras e o ponto de vista dos grandes capitalistas.

A resposta a esta questão (“contribuíram para melhorar ou para piorar?”) pode não ser unânime, pode não ser definitiva, pode incluir ressalvas, pode ser contraditória, mas olhando de conjunto os 14 anos dos governos Lula e Dilma, os dados objetivos indicam que a presença do PT na Presidência da República contribuiu para melhorar a vida da maioria do povo e, por isso mesmo, os capitalistas adotaram o caminho da reação.

É por isso que, em minha opinião e também no senso comum de grande parte das pessoas, o PT continua sendo um partido de esquerda, mesmo que seu ideário tenha se enfraquecido, mesmo que a Carta ao Povo Brasileiro tenha sido um erro etc.

Agora quero voltar ao tema da corrupção. Segundo Brum, “o PT se corrompeu no poder. É um fato”. Ela diz também que “negar que o PT se corrompeu no poder é quase tão delirante quanto negar o aquecimento global provocado por ação humana.”

Brum talvez não perceba, mas sua maneira de tratar do tema está mais para teológica, do que para política. O que é um sinal dos tempos, uma demonstração de que a visão de mundo fundamentalista está ganhando adeptos fora da seara bolsonarista.

O viés teológico aparece não apenas no descarte ameaçador contra quem pensa diferente (a corrupção seria um “fato” não reconhecido apenas por quem é “delirante” ou “mau caráter”), mas principalmente na afinidade que existe entre sua noção de “corrupção” e a transformação sofrida quando se abandona o plano paradisíaco do “ideário”.

Antes, um detalhe: o PT nunca chegou “ao poder”. O poder real neste país continuou nas mãos de quem já o dominava, em 2002. O PT chegou ao governo federal, elegeu um presidente, controlava malemale uma parte da burocracia estatal, parte do Congresso Nacional, parte dos governos estaduais e prefeituras municipais e tinha influência em outros espaços e instituições. Mas o poder continuou nas mãos da classe dominante.

Mas admitamos que é isto que Brum quis dizer: que o PT se corrompeu “no governo”. Isto é mesmo um “fato”?

Naquele sentido “teológico”, é. Afinal, todo partido de oposição, ao vencer, se converte em partido de governo. Esta mudança não é um detalhe. Altera seu lugar na sociedade, como se é percebido pelos demais, como se percebem os problemas, como se atua etc. E, o que é mais grave, uma vez governo, o antigo partido de oposição é chamado a implementar seu programa. E ao fazê-lo, se depara com inúmeras dificuldades. É obrigado, inevitavelmente, a fazer mediações, concessões. Parte de suas bases e parte de seus adversários dizem que estas mediações são uma traição dos princípios originais. E acusam: o partido “se corrompeu no poder”.

A questão é: isto que descrevemos acima aconteceu com absolutamente todos os partidos de esquerda, tanto os que chegaram ao poder, quanto os que chegaram ao governo, durante todo o século XX e início do século XXI. E acontecerá novamente no futuro. Portanto, se adotarmos um ponto de vista maximalista a respeito, a conclusão é que a esquerda deve ficar eternamente na oposição, assim ela não se “corrompe”.

Mas para aqueles que querem transformar a sociedade, e que sabem que para isso é preciso construir e conquistar o poder (não apenas governos), a questão não pode ser posta neste plano genérico.

A questão tem que ser posta no plano concreto: de que “corrupção” estamos falando? Noutras palavras: a chegada do PT ao governo federal causou que tipo e que quantidade de “corrupção”? E esta “corrupção” foi tanta, que alterou a natureza social e política do Partido? A quantidade se converteu em qualidade? O PT deixou de ser de esquerda, deixou de ser um instrumento útil para a classe trabalhadora?

Registro que estou empregando o termo “corrupção” aqui, quando poderia estar falando de transformação ou metamorfose, para respeitar a escolha feita por Brum. Mas longe de mim achar que esta escolha seja a melhor.

Pelo contrário, acho que trata-se de uma escolha que dialoga com os “piores instintos” dos setores médios, de esquerda ou de direita.

Brum afirma que, para o “senso comum, porém, o PT é um partido de esquerda. Não só é como foi a principal experiência de um partido de esquerda no poder da história da democracia brasileira. Logo, não se corromper no poder, fazer diferente da velha política conservadora, já não é uma diferença da esquerda para a população. Negar que o PT se corrompeu no poder é quase tão delirante — ou mau caráter — quanto negar o aquecimento global provocado por ação humana”.

Portanto, “não se corromper” seria “fazer diferente da velha política conservadora”. Logo, se o PT se corrompeu, é porque ele estaria fazendo a “velha política conservadora”.

Pergunto: esta acusação se baseia em quais fatos, exatamente? Perdão a quem possa achar que isso é mau caratismo ou atitude delirante, mas repito a pergunta: com base em quê o conjunto do PT, de sua militância, de seus parlamentares, de seus governantes, de suas lideranças e intelectuais podem ser acusados de estar fazendo a “velha política conservadora”??

No fundo, eu acho graça neste tipo de truque retórico adotado por Brum: “falar alto” (dizer é um fato, acusar quem não concorda de ser delirante ou mau caráter) simplesmente para ocultar que certas afirmações sobre o PT se tornaram “verdades” não por serem verdadeiras, mas pelo fato de serem repetidas milhares de vezes.

Aqui vale a pena destacar outro detalhe retórico muito interessante: Brum diz que o “para o senso comum” o PT “é um partido de esquerda”, apesar dele ter se corrompido, logo “não se corromper no poder (…) já não é uma diferença da esquerda para a população”. Ou seja: o PT não teria corrompido apenas a si mesmo, teria corrompido também a população.

Noto que esta foi uma acusação lançada contra o PT, entre 2006 e 2014: ter corrompido parcelas da população, através de determinadas políticas sociais. Mas aqui a acusação aparece num “plano” retórico mais elevado.

De toda forma, se é assim, por qual motivo então o senso comum acha que o PT é de esquerda?

Brum não responde a questão. Pelo contrário, ela faz uma lista do que ela considera terem “ações e omissões” que não “podem ser relacionadas com um ideário de esquerda, pelo menos de uma esquerda que mereça esse nome”. A lista inclui: “o desemprego voltou a crescer e os direitos do trabalhador começaram a ser cortados já no governo de Dilma Rousseff”; a “reforma agrária (…) não avançou de forma significativa no governo de esquerda”; “o MST (…) se domesticou quando o PT estava no poder. O mesmo aconteceu com grande parte dos movimentos sociais, que viraram governo em vez de continuar sendo movimentos sociais”; “nos governos do PT foram fortalecidos os laços com a bancada ruralista”; “se iniciou um claro projeto de desmantelamento da Funai (Fundação Nacional do Índio)”; Lula teria dito, em 2006, que “os ambientalistas, os indígenas, os quilombolas e o Ministério Público eram entraves para o crescimento do país”; Dilma sancionou a lei antiterrorista; as hidrelétricas na Amazônia; “comunidades urbanas pobres foram expulsas de suas casas para as obras superfaturadas da Copa e da Olimpíada, assim como povos da floresta foram arrancados de suas ilhas e beiradões para a construção de hidrelétricas”; “a Força Nacional foi usada para reprimir greve de trabalhadores na construção de Belo Monte e também reprimir protestos da população atingida contra a hidrelétrica”; “além de acentuar o horror do sistema prisional brasileiro, ainda fortaleceu a desastrosa política de “guerra às drogas”, comprovadamente falida”; no final do governo de Dilma Rousseff, até mesmo os melhores projetos construídos nos governos do PT, os claramente de esquerda, como na área da saúde mental, começaram a ser desmanteladas”.

Ufa.

Aos que chegaram vivos até este ponto, Brum afirma o seguinte: “A lista pode continuar. Mas acredito que já está de bom tamanho para expor aquilo que acho importante afirmar se quisermos compreender esse momento tão delicado. De forma nenhuma eu entendo que o governo do PT foi igual aos anteriores, muito menos que seja parecido com o governo de extrema direita que já começou”.

Digamos, para facilitar a conversa, que tudo o que Brum disse fosse verdade. Pergunto: por qual motivo, então, o senso comum segue achando que o PT é de esquerda???

Ela lista, desta vez sem apresentar senões, “o avanço nas cotas raciais, a ampliação do acesso ao ensino superior, a expansão do Bolsa Família, o aumento real do salário mínimo, a consequente redução da miséria e da pobreza”, que “mudaram o país”.

Mas diz que “não é permitido desviar das contradições. É necessário caminhar com elas e enfrentar as complexidades se a esquerda quiser se mover — e não apenas reagir e reagir. E reagir de novo”.

Verdade: não nos é permitido desviar das “contradições”. Mas a noção de “contradição” consiste exatamente em “ser” e “não ser”. Logo, se estamos no plano da análise das “contradições”, o correto seria dizer que o PT é de esquerda, continua sendo, mas ao chegar ao governo implementou políticas contraditórias entre si e consigo mesmo. Como já vimos, entretanto, não é isto que Brum pensa. Ela acha que o PT deixou de ser de esquerda desde 2002. Portanto, a conclusão é encaminhada (embora não afirmada) para o seguinte desfecho: as políticas de direita cometidas durante os governos Lula e Dilma são de responsabilidade do PT, as políticas de esquerda são de responsabilidade… do Espírito Santo?

Deixemos de lado a minha interpretação e passemos à análise das palavras dela: “o que afirmo é que a última — e em certa medida única — experiência de esquerda que marca a memória da população foi construída pelos governos do PT. E que as diferenças não são suficientes para que a população possa compreender um projeto de esquerda. Como o cérebro humano em geral recorda e torna totalizante o que vem por último, a diferença de um governo de esquerda para qualquer outro fica ainda mais nebulosa. É possível que, no futuro, quando for um passado mais distante, os anos de Lula ganhem os tons da nostalgia”.

No parágrafo acima tem três palavras que, no contexto, se tornam curiosas: “compreender”, “população” e “cérebro”.

A população brasileira é composta por cerca de 200 milhões de pessoas, com mais de 135 milhões de eleitores. Recentemente tivemos uma eleição que funciona como uma pesquisa de opinião acerca do que pensa esta população. No segundo turno, cerca de 31 milhões não escolheram ninguém, 47 milhões foram de Haddad e 57 milhões foram de Bolsonaro.

Portanto, primeira conclusão: a “população” brasileira é heterogênea e, portanto, não há como ela “compreender” da mesma forma os fenômenos. Segunda conclusão: o “cérebro” não forma sua opinião acerca dos fenômenos políticos e sociais, de forma similar a que registra os fenômenos circunvizinhos. Não se trata de um fenômeno apenas biológico ou neurológico, é um fenômeno psico-social muito complexo.

Prova disso? A “prova”, entre aspas, é que havia uma maioria do eleitorado pesquisado disposto a votar em Lula, apesar de haver uma maioria relativa com críticas ao que fora o governo Dilma. O “cérebro” da “população” não teria sabido “compreender” um “projeto de esquerda”? Ou a consciência de uma parte das classes trabalhadoras é esperta o suficiente para saber diferenciar amigos, contradições incluídas, de inimigos?

Para deixar mais claro onde quero chegar: Brum está no seu direito de apontar todas as contradições, erros, omissões e inclusive traições que ela julgue tenham sido cometidas pelo PT. E o PT tem o dever de debater cada uma dessas questões, não por conta de Brum pessoa física, mas por conta de que parte da nossa base social acredita ou tem dúvidas a respeito. Isto posto, Brum, na minha opinião, erra feio quando nega ao PT a condição de partido de esquerda (recentemente Mangabeira Unger fez o mesmo, em entrevista concedida à Folha de S. Paulo).

Sigamos adiante: Brum diz que “os anos de melhoria de vida determinadas por políticas públicas vão sendo apagados pelas dificuldades imediatas num país formado em sua maioria por sobreviventes com medo de perder o que ainda têm. A vitória de Fernando Haddad (PT) sobre Bolsonaro no Nordeste mostra justamente que, nos estados mais pobres do país, a maioria entendia muito claramente qual era a diferença. Mas essa diferença, marcada por políticas públicas como o Bolsa Família, não teve o mesmo impacto nas demais regiões de um país gigante, desigual e culturalmente diverso”.

A primeira parte do raciocínio acima, dedicada ao futuro, é algo que pode ou não se confirmar, a depender da luta política. Da mesma forma como os momentos ruins do final do governo Dilma não apagaram os anos bons do segundo governo Lula, os momentos péssimos que virão com Bolsonaro não apagarão os momentos positivos dos governos petistas… a não ser que o PT seja destruído, ou tão desmoralizado, que o esquecimento se imponha porque o PT deixou de reagir e até mesmo de existir.

Aqui é o ponto que me parece mais grave: há determinado tipo de crítica ao PT que, no fundo, nega ao partido o direito de existir no presente e no futuro. Pois seu passado é reescrito de tal forma que ter feito parte dessa história começa a ser apresentado como algo vergonhoso. De certa forma foi o que se tentou fazer com a tradição marxista, comunista e revolucionária do século XX. Não tiveram êxito e, faço votos e luto por isto, não terão êxito no que tentam fazer com o PT.

Passo agora ao segundo trecho do parágrafo que reproduzi acima: “A vitória de Fernando Haddad (PT) sobre Bolsonaro no Nordeste mostra justamente que, nos estados mais pobres do país, a maioria entendia muito claramente qual era a diferença. Mas essa diferença, marcada por políticas públicas como o Bolsa Família, não teve o mesmo impacto nas demais regiões de um país gigante, desigual e culturalmente diverso”.

Como apontei antes, Brum as vezes recicla argumentos que saíram de um “ideário” conservador. É o caso da afirmação segundo a qual a Bolsa Família teria sido o fator essencial do voto em Haddad “no Nordeste”. E para que não sobrem dúvidas sobre o que estou querendo dizer, recomendo ler o que vem logo a seguir no texto de Brum: “Uma das chaves para compreender por que Lula ocupava um primeiro lugar folgado nas pesquisas pré-eleitorais para a presidência, em 2018, antes de sua candidatura ser impedida pelo judiciário, também aponta para algo importante. O Brasil cheio de potência da primeira década do século está intimamente ligado à figura de Lula, que terminou o segundo mandato com quase 90% de aprovação — e não está ligado ao PT e à esquerda, ou está muito menos ligado ao PT e à esquerda. Também nisso não se fez diferente da extrema direita populista”.

As palavras são mais educadas, as frases são mais bem construídas, mas no fundo lembra o raciocínio da direita: os populistas compraram o voto dos pobres.

O que mais me incomoda neste raciocínio não é a falta de lógica, mas sim o preconceito de classe. A votação do PT, no país como um todo e em cada região em particular, tem muitas motivações e explicações. A ênfase em uma explicação, em um fator causante, está ligada a afirmação de uma narrativa. E, neste caso, esta narrativa se estrutura em torno de um preconceito de classe e regional: o Brasil é “um país gigante, desigual e culturalmente diverso”, portanto o que vale para o “Nordeste”, não valeria para o resto do país.

Afirmo tratar-se de um preconceito, por dois motivos. Primeiro, porque não se pergunta quais foram os motivos dos eleitores de Bolsonaro. A pergunta é apenas sobre os motivos de quem votou em Haddad e, claro, estes votaram em troca de algo!!!

Segundo, porque não se pergunta em quem votaram todos os eleitores que recebem Bolsa Família. A maioria votou em Haddad? Ou é provável que tenha ocorrido uma distribuição de votos similar ao do eleitorado nacional? E, nesse caso, não seria o caso de perguntar por outras motivações de voto, que não o recebimento da bolsa família?

Seria um exagero a acusação de preconceito? Não, infelizmente não é. Pelo menos é o que eu deduzo da frase a seguir: “O tratamento de eleitores como adultos infantilizados – e não como cidadãos emancipados – é uma conta alta que o PT e toda a esquerda estão pagando agora.”

Novamente, esta acusação não é nova e pode ser encontrada na caixa de ferramentas do PSDB e de uma parte da direita. Mas chega a ser patético que esta acusação seja lançada contra o PT, levando em conta o que foi e que recursos utilizou a campanha de fake news desenvolvida por Bolsonaro. Depois das mamadeiras, acusar o PT de tratar os eleitores como adultos infantilizados é o que há de despropósito.

Neste ponto, o alvo de Brum passa a ser não apenas o PT, mas também Lula. Atrás já perguntei: se “as políticas de direita cometidas durante os governos Lula e Dilma são de responsabilidade do PT, as políticas de esquerda são de responsabilidade… do Espírito Santo?”

Repito mais uma vez um trecho de Brum a respeito: “o Brasil cheio de potência da primeira década do século está intimamente ligado à figura de Lula, que terminou o segundo mandato com quase 90% de aprovação — e não está ligado ao PT e à esquerda, ou está muito menos ligado ao PT e à esquerda”.

A frase é um pouco vacilante (primeiro ela afirma que “não” está ligado, depois ela diz que está “muito menos ligado” ao PT e à esquerda), mas a vacilação desaparece no que toca ao papel de Lula: ele seria central, não importa qual tenha sido o papel do PT e da esquerda.

E o que Brum nos diz sobre Lula? Que sua relação “com os eleitores, em especial a partir do segundo mandato, foi populista e paternalista. Os eleitores não eram tratados como cidadãos autônomos, que conferiam ao governante um mandato de poder temporário, que seria rigorosamente fiscalizado por eles, mas sim filhos a quem um pai afetuoso concedia agrados. Foi também como “mãe do PAC” ou “mãe dos pobres” que Dilma foi apresentada na primeira eleição, embora não tenha funcionado graças ao desconforto louvável que ela sentia com o figurino”.

Aqui outro comentário pessoal: não faço parte da tendência de Lula, não sou nem nunca fui “lulista”, não aprecio determinados recursos de retórica, nem acho que por estar injustamente preso ele não possa ser criticado. Isto posto, acho que a crítica de Brum confunde retórica com conteúdo.

É verdade que, num certo sentido, Lula é “paternalista”, tanto quanto foram Fidel Castro e Hugo Chavez. Mas o que é melhor, do ponto de vista do povo? Ter um presidente que tenha afeição e preocupação real pelas condições de vida do povo? Ou ter um presidente incapaz de empatia pelos sofrimentos do cidadão comum? Incapaz seja porque não viveu nada parecido com estes sofrimentos ou incapaz porque foi treinado, em alguma academia, a achar que ser “paternalista” é feio, bonito é ser “científico”?

É verdade, também, que num certo sentido Lula é “populista”. Ele faz parte de uma corrente da esquerda latino-americana que buscou construir uma aliança entre as classes trabalhadoras e parte do empresariado. Como antes em nossa história, a classe dominante primeiro se opõe, depois tolera e tenta cooptar, depois rejeita e tenta destruir este tipo de “populismo”.

O referido “populismo” tem muitos defeitos. Mas não é correto, no sentido de não ser aderente aos fatos, acusar este populismo de não tratar os “eleitores” como “cidadãos autônomos, que conferiam ao governante um mandato de poder temporário, que seria rigorosamente fiscalizado por eles, mas sim filhos a quem um pai afetuoso concedia agrados”.

Não me refiro a retórica, me refiro aos fatos: os momentos em que houve maior ampliação das liberdades democráticas para as classes trabalhadoras, no Brasil e na América Latina, foram exatamente aqueles momentos em que o “populismo de esquerda” esteve no governo.

Por exemplo: posso me incomodar com a retórica segundo a qual Evita era a “mãe dos pobres”, mas não posso desconhecer que tenha sido no governo Perón que os trabalhadores em geral e as mulheres em particular ganharam mais direitos políticos e sociais.

Brum diz que “o PT tem grande responsabilidade em converter direitos em concessões ou favores no imaginário popular, o que marca o pior da política”. Acontece que, tirante momentos retóricos, não foi isto o que ocorreu. Pelo contrário! A maior parte da população beneficiada por políticas de transferência de renda nos governos Lula e Dilma atribuiu sua melhoria social a Deus, ao apoio da família e a seu próprio esforço pessoal. Portanto, das duas, uma: ou o PT tentou e não conseguiu; ou o PT não tentou fazer isto de que Brum nos acusa.

O grave é que esta acusação contra o PT tem como objetivo declarado “passar o pano” na direita, como se pode conferir no seguinte trecho: “Não me parece, portanto, que a demonização da esquerda seja apenas conferida pela manipulação articulada pela extrema direita e também resultado da ignorância de grande parte da população sobre conceitos básicos. Em parte, sim. Mas há algo concreto, factual e legítimo, embora nem sempre claro, na reação de parte da população contra a esquerda. Se você não consegue ver a diferença entre os projetos e a sua vida está ruim, o culpado é quem estava no governo. E o PT esteve no governo por mais de 13 anos. Se você não consegue ver diferença, esquerda é o nome de tudo o que você odeia”.

Ou seja: a culpa é do PT.

Não sei do que nós, petistas, reclamamos. Afinal, a culpa é sempre nossa.

Mas, mesmo correndo o risco de ser acusado de “delirante”, proponho analisar com carinho o raciocínio de Brum. Para fazer isso mais facilmente, tomei a liberdade de reescrever por minha conta e risco sua frase, mas usando o raciocínio direto.

Ficaria assim: A demonização da esquerda é em parte conferida pela manipulação articulada pela extrema direita e em parte resultado da ignorância de grande parte da população sobre conceitos básicos. [Mas também] Há algo concreto, factual e legítimo, embora nem sempre claro, na reação de parte da população contra a esquerda. O PT esteve no governo por mais de 13 anos. Se você não consegue ver a diferença entre os projetos e a sua vida está ruim, o culpado é quem estava no governo. Se você não consegue ver diferença, esquerda é o nome de tudo o que você odeia.

Vamos por partes, começando pelo início. No Brasil, desde que se introduziram os processos eleitorais para escolha de governantes, a classe dominante teve que aprender a operar para “manipular” parte das classes trabalhadoras. Isto não é uma novidade introduzida por Bolsonaro, é da natureza do sistema eleitoral no capitalismo em geral e no brasileiro em particular. A exceção ocorre exatamente quando a esquerda convence a maioria dos trabalhadores a votar nos seus próprios representantes de classe.

Portanto, a questão central não é a manipulação em si. Nem é o fato da manipulação de 2018 ter se baseado em fatos reais. Afinal, toda e qualquer manipulação só funciona quando se apoia em algo real. Mas não é comum ver intelectuais democratas fazendo “mediações” com o nazismo por conta disso.

A questão central consiste em responder uma sequência de questões: a) primeiro, por qual motivo parte do eleitorado que votava no PT deixou de votar ou se absteve; b) segundo, saber por qual motivo a candidatura preferida pela classe dominante foi Bolsonaro e não outra, mais polida; c) em terceiro lugar, quais foram os meios e os argumentos utilizados pela candidatura Bolsonaro.

Não é possível explicar a vitória de Bolsonaro, sem considerar as três questões. Até porque Bolsonaro não convenceu a maioria da população, nem convenceu a maioria do eleitorado. Se Haddad tivesse conquistado mais 5 milhões de votos, talvez tivesse vencido a eleição. E se Lula tivesse sido candidato, Bolsonaro não teria vencido.

Noutras palavras, a vitória de Bolsonaro não foi obtida através de “argumentos”. A vitória de Bolsonaro foi obtida, antes de mais nada, através do golpe contra Dilma e através da interdição da candidatura de Lula. Omitir estes dois detalhes e discutir os “argumentos” é omitir aspectos essenciais da história.

Isto posto, vamos nos focar no detalhe: os argumentos. Segundo Brum, “a eleição de Bolsonaro mostrou que a esquerda não convenceu a maioria dos eleitores de que pode mudar sua vida para melhor. Então muita gente preferiu tentar algo extremo, porque o desamparo é grande. E como a vida no Brasil está ruim mesmo, é catártico poder culpar alguém por todas as merdas que acontecem no seu dia, assim como pela imensa sensação de fracasso e de insegurança. A esquerda — ou o comunismo ou o marxismo — virou esse nome para tudo o que não presta, já que não dá para saber o que ela é e o que propõe de fato”.

Minha dificuldade em aceitar este raciocínio é sua excessiva generalidade. Volto aos números: 57, 47, 31. Bolsonaro não conseguiu convencer a maioria dos eleitores. Convenceu a maioria dos que foram votar. Parte do eleitorado de Bolsonaro votou em favor de seus interesses: são capitalistas ou parte dos setores médios tradicionais, que tinham motivos muito concretos para votar contra o PT. Outra parte do eleitorado de Bolsonaro é composta por trabalhadores que já votavam tradicionalmente contra o PT. Fizeram isso em 2002, 2006, 2010 e 2014. Portanto, a novidade não é que tenham votado contra o PT, a novidade é que tenham visto em Bolsonaro (e não em tucanos) uma alternativa. Uma terceira parte do eleitorado de Bolsonaro é composta por gente que votou no PT nas últimas eleições. Neste caso, estamos diante de uma dupla novidade: não apenas deixaram de votar no PT, mas como também passaram a votar num inimigo declarado do PT.

Sendo assim, voltemos ao raciocínio de Brum, segundo o qual “a eleição de Bolsonaro mostrou que a esquerda não convenceu a maioria dos eleitores de que pode mudar sua vida para melhor”. Como demonstramos, este argumento não cabe para uma parte do eleitorado de Bolsonaro, que nunca poderá ser convencido de que o PT pode mudar sua vida para melhor. Também não cabe para outra parte do eleitorado de Bolsonaro, porque são setores da classe trabalhadora que nunca foram convencidos a votar no PT. Resta assim uma terceira parte, para a qual o raciocínio de Brum valeria desde que fosse assim ajustado: “a eleição de Bolsonaro mostrou que a esquerda perdeu o apoio de uma parte dos eleitores a quem antes havia convencido de que podia mudar sua vida para melhor”.

E a pergunta a ser respondida é: por quê?

É neste momento que Brum introduz o famoso tema da autocrítica. Suas palavras são: “Quando se exige uma autocrítica do PT é exatamente porque sem ela não é só o PT que não avança, mas todo o campo da esquerda que foi identificado com o PT, com ou sem razão. Como o PT usa inúmeras justificativas para não fazer autocrítica, o que me parece não só desrespeito aos eleitores, mas também um tremendo equívoco político, nada avança. Se você não pode falar sobre o que errou, e que todo mundo viu que errou, como alguém vai acreditar em seus acertos?”

Eu não sei se Brum teve a oportunidade de ler as resoluções do PT, desde 2005 até 2018. Se o fez, verá inúmeras autocríticas. Pode não ser as que ela gostaria, pode não ser as que eu gostaria, mas sem dúvida estão lá. Assim, a pergunta é: do que exatamente estamos falando?

Eu por exemplo gostaria que o PT fizesse uma autocrítica acerca de sua estratégia política. No meu vocabulário, isto quer dizer: fazer uma crítica da política adotada e adotar outra, que seja capaz de construir e conquistar o poder para as classes trabalhadoras, na perspectiva de construir o socialismo no Brasil.

Brum estaria pedindo uma autocrítica deste tipo? Penso que não. Pois para ela, “quando insisto na autocrítica do PT não estou preocupada com o futuro do partido, mas sim com a necessidade de a esquerda ser capaz de criar um projeto que mostre a sua diferença. Como o PT é a experiência de esquerda que a população viveu, a autocrítica é fundamental para que a esquerda possa construir um outro projeto. Autocrítica não como expiação cristã, mas como dever democrático, compromisso público com o público”.

Embora fale que não quer uma “expiação cristã”, Brum é honesta o suficiente para deixar claro que deseja que a esquerda construa “um outro projeto”. E querer que o PT faça autocrítica para contribuir com sua própria superação, é exigir algo mais adequado a santos, não a partidos políticos. Sem falar do gosto amargo que provoca a invectiva, exatamente num momento em que a direita está operando para destruir o PT, com ou sem autocrítica.

Vou pular a parte do texto de Brum que fala de Daniel Ortega, Rosario Murillo e Nicolás Maduro. Passo direto para a frase acerca “dessa esquerda apodrecida, que morre abraçada com ditadores e não consegue admitir que se corrompeu, precisa ser superada. Essa esquerda que já não é está atrapalhando a esquerda que quer ser”.

Não é dito, mas na minha opinião está implícito: o PT está atrapalhando. Por acaso, esta a mesma opinião da extrema-direita.

A pergunta é: esta esquerda “que quer ser”, caso mereça o posto, precisa lutar por ele. E conquistá-lo por mérito próprio, não por ter sido ajuda por uma “autocrítica” do PT, nem por ter sido ajudada pelos ataques da extrema direita contra o PT.

E o PT? Bom, espero, faço votos e luto para que continuemos existindo, como principal partido de esquerda do Brasil, como representante da maioria dos trabalhadores e das trabalhadoras conscientes, como defensores da soberania nacional, da integração regional, das liberdades democráticas, do bem estar e do socialismo.

Brum termina seu artigo da maneira mais politicamente correta possível: defendendo que a esquerda continua sendo necessária, e que precisa dar à mudança climática o lugar central que ela tem na realidade.

Como ela, acredito que a única maneira totalmente coerente de enfrentar a mudança climática, é a partir de princípios de esquerda. No meu caso, com isto quero dizer: a partir de princípios e de políticas anticapitalistas.

Pois do ponto de vista histórico, uma esquerda que sabe quem é, é aquela que sabe contra o quê e contra quem luta.

Quem se acha de esquerda, mas faz do PT seu alvo principal, perdeu o rumo.

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