Resposta ao segundo texto do Coletivo Zagaia sobre a polêmica Ditadura Militar x “Ditadura Civil-Militar”

Por Pedro Estevam da Rocha Pomar (*)

Figueiredo cercado por militares

O Coletivo Zagaia volta ao ataque com novo texto (“Muito além do ‘modismo’: quem confunde as palavras, confunde as coisas”, disponível em http://zagaiaemrevista.com.br), agora ensaiando, de início, um tratamento mais cordial (“Prezado Pedro Pomar”, “o senhor”), que mais adiante, contudo, vai abandonar. Antes de entrar na polêmica sobre a denominação da Ditadura — se Militar ou “Civil-Militar” — os membros do Zagaia finalmente se identificam, aceitando meu desafio para que publicassem os seus nomes, e fazem disso o primeiro cavalo de batalha do novo texto. Ressaltam que “sempre foi possível” identificar os integrantes do coletivo em sua página digital e rechaçam “a insinuação de que nosso [deles] artigo era despersonalizado”. Em seguida, atribuem-me a intenção (que nunca tive) de não reconhecer “o coletivo como modo legítimo de se manifestar”. Ainda, nesses parágrafos iniciais, procuram negar que tivessem a intenção de “atacar a sua [minha] pessoa acima de tudo”, sendo o antagonismo “fundamentalmente em relação ao posicionamento tomado pelo senhor”.

Muito bem. A meu ver é recomendável que artigos como o primeiro lançado pelo grupo, jocosamente intitulado “A construção da verdade ou da obrigação de combater a Tradição, Família e Impropriedades”, sejam sim assinados por pessoas, o que não impede a assinatura conjunta do grupo. Por exemplo: Rodrigo Suzuki Cintra, Silvio Carneiro, Thiago Mendonça – Coletivo Zagaia. Por duas razões muito simples. Primeira, porque trata-se de um texto agressivo, que não poupa o alvo (no caso, a minha pessoa) de considerações sarcásticas, que abrangem desde a sua competência como articulista até os seus vínculos familiares. Segunda, porque o Zagaia é um grupo desconhecido da maioria do público leitor. Consultei pessoas do movimento por memória, verdade e justiça que conhecem o Cordão da Mentira, mas ignoravam o Zagaia até o momento em que o citei. Parece-me um exagero querer que o leitor se dirija ao site do grupo, se quiser saber quem são os autores do artigo.

Dito isto, acrescento que jamais me passou pela cabeça que coletivos, quaisquer coletivos, sejam ilegítimos para se manifestar. Pelo contrário, é próprio da democracia que os coletivos exerçam o direito de se manifestar. Mas se um coletivo opta por detratar uma pessoa (que seus membros mal conhecem, por sinal, como a leitura do texto evidencia), assacando acusações depreciativas, adotando um estilo mordaz, deve então assumir suas responsabilidades claramente, para que o leitor possa se situar, saber com quem está lidando. Isso é feito do modo que indiquei acima (assinatura conjunta de coletivo e indivíduos). Há também, como mencionei, a questão da posição relativa do grupo ou entidade: se é amplamente conhecida ou não. Se o diretório de um partido político, a direção de um sindicato ou uma entidade qualquer, conhecida nacionalmente, emite uma nota pública sobre um determinado fato, raramente será necessário acrescentar o nome de algum dirigente. Não é o caso do Zagaia.

Considero um recuo tático a declaração pro forma do Zagaia de que não tinha intenção de me atacar, de castigar a minha pessoa, mas sim de criticar meu escrito “Um modismo equivocado”. Ora, basta ler a réplica do Zagaia, “A construção da verdade…”, para constatar que o tipo de “verdade” que se construiu ali consiste em desconstruir impiedosamente o autor do outro texto, recorrendo até mesmo à chacota, como se viu na questão da “tradição, família e impropriedades”; na alusão à suposta incompetência do autor; e até no seu enquadramento e de suas ideias no tempo histórico, ao (des)qualificá-lo como possuidor de “retórica à moda antiga”, de  “visão arcana”. Expressiva parcela do texto é utilizada para comentários extremamente depreciativos, cujo ápice me parece ser o emprego da expressão “peleguismo de esquerda” (sic). Ora, quem pratica peleguismo, mesmo que de esquerda, só pode ser pelego, não é mesmo?

“Peleguismo” e antiguidade

A acusação de peleguismo de esquerda, tentam explicar eles neste último texto, “não era uma crítica à sua [minha] pessoa, mas à sua [minha] posição em relação ao fato”. Mais ainda: “Não se trata de preconceito ou ódio de nossa parte … mas de colocar sob regime de suspeita tal afirmação: um ato salutar no pensamento e na ação”. Perdoem-me os leitores, mas afirmações desse tipo beiram o cinismo. Fico imaginando como é possível praticar um tamanho contorcionismo com as palavras, especialmente num texto intitulado “…quem confunde as palavras, confunde as coisas”! Melhor seria o Zagaia assumir o que disse, ao invés de criar frases inteiramente artificiais, inconsistentes, como “colocar sob regime de suspeita tal afirmação”…

Antes de entrar no mérito da discussão sobre a Ditadura Militar, mais duas questões. Diz o Zagaia: “não se trata, é claro, apenas de um conflito geracional como o senhor sugere ao fim de seu artigo”… Ora, eu nada sugeri a respeito, limitei-me a estabelecer um contraponto. Foi o Zagaia quem instalou retoricamente esse conflito, em sua primeira resposta, ao classificar o autor criticado como “antigo”, “arcano”, “arcaico” (logo, superado). Precisa de mais?

Para encerrar esta primeira etapa, assinalo que o esforço do Zagaia de apresentar-se de maneira civilizada, no seu segundo texto, durou uns poucos parágrafos. A partir de determinado momento encontram-se no texto um “afinal, Pedro…” (contrastando com o tratamento anterior), um “Não nos venha com a conversa…!”, e depois: “estratégia de esquiva”, “território obtuso”. E também: “o pedido para mostrarmos a cara lembrou um pouco aquelas investigações policialescas de quem quer saber quem é o efetivo culpado pelo crime”. Não custa lembrar que na verdade os métodos da polícia são menos corteses, mas o Zagaia parece não conhecê-los. Ou não faria piada relacionando a sigla TFP a uma família que teve um de seus membros assassinado pela Ditadura Militar, e outro preso e torturado por duas vezes.

Por que Ditadura Militar

Sustentei, no meu artigo “Um modismo equivocado”, que é um engano definir o regime vigente no Brasil entre 1964 e início de 1985 como “Ditadura Civil-Militar” (e já existe até a variante “Ditadura Empresarial-Militar”). O termo correto para definir tal regime, defendo no artigo citado, é Ditadura Militar. Meu argumento, em resumo, é de que a forma assumida pela Ditadura, após o êxito do golpe de março-abril de 1964, é tipicamente militar. Não há dúvidas quanto à participação civil, especialmente na preparação e execução do golpe — o qual, por esse motivo, pode sim ser definido como civil-militar. No entanto, não demorou para que o poder político passasse a ser exercido diretamente e exclusivamente pelos militares.

As principais decisões eram tomadas pelos generais do Alto Comando. O governo militarizou-se de alto a baixo. Expoentes civis da direita, que tiveram participação destacada no golpe, como Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, tiveram de abrir mão de suas pretensões presidenciais. Os que ofereciam mais riscos, na visão dos militares, em determinado momento simplesmente tiveram seus direitos políticos cassados, como Juscelino Kubitschek e o próprio Lacerda. Porém, será que alguém duvida da legitimidade de ambos como representantes da burguesia?

Indaga o Zagaia: “Afinal, os civis participaram ou não? Como eles participaram? O problema de seu conceito de poder está no sentido de afirmar que quem manda é apenas quem o detém formalmente”. Formalmente?!? Há aqui um erro crasso dos autores, o de acreditar que os militares detinham somente o poder formal. Ora, os generais mandavam de facto, bem mais do que de direito. Não estamos falando de formalidades, ou de aparências, mas de quem detinha o efetivo poder político. Tanto poder, que incluía a cooptação de civis para aqueles cargos que os militares sabiam que não tinham quadros próprios para preencher, o que explica a presença de figuras como Mário Henrique Simonsen e Delfim Netto à frente do Ministério da Fazenda, ou de Eduardo Portela no Ministério da Educação — que, no entanto, chegou a ter como titular o coronel Jarbas Passarinho, do Exército.

Portanto, o poder dos militares permitiu-lhes não só alijar e anular quem lhes parecia incômodo, como trazer para perto os civis que lhes interessavam como ministros, conselheiros e demais assessores. Por outro lado, obviamente o governo militar se relacionava com os grandes capitalistas. Disso não se deve depreender, como parece sugerir o Zagaia, que os detentores do grande capital davam ordens aos militares, ou que governavam em condomínio com eles. O fato de a grande burguesia ter sido, em última análise, a maior beneficiária do regime militar brasileiro não fez dela detentora do poder de Estado — exceto, talvez, nos anos finais desse ciclo. Na maior parte do tempo quem exerceu o poder em nome da burguesia, e contudo não raramente à revelia dela, foram os militares.

Repito aqui uma frase de meu artigo “Um modismo equivocado”, a qual, acredito eu, não foi lida com cuidado por aqueles que me criticam: “É claro que o golpe de março-abril de 1964 teve forte presença do grande capital e de outros setores civis e, neste sentido, pode ser denominado ‘cívico-militar. Mas, uma vez derrubado Jango e entronado Castello Branco, instaurou-se a Ditadura Militar. Ou seja, a partir de 1964 a forma assumida pelo domínio burguês foi precisamente um regime militar, uma ditadura castrense.

Domínio burguês, portanto! Exercido, todavia, por mediação dos militares… Desde cedo deixei claro que houve ativa participação civil ao longo da Ditadura Militar e que esta participação, ou cumplicidade, estendeu-se às violações de direitos humanos e crimes cometidos contra os opositores do regime. Contudo, frisei tratar-se de uma participação subordinada, isto é: a orientação geral do regime, estratégica, era ditada pelos altos comandos das Forças Armadas. Mas atenção: isso não absolve os civis que tenham apoiado o regime militar (burgueses ou não), nem diminui a sua responsabilidade nos crimes eventualmente cometidos com sua conivência, tenham eles sido de natureza econômica, política ou quaisquer outras. Civis envolvidos em perseguições, torturas, assassinatos, desaparecimentos e quaisquer outros crimes vinculados à Ditadura Militar devem ser exemplarmente processados e punidos.

Terrorismo de Estado

Ainda sobre o mérito da polêmica, diz mais o Zagaia: “Sabemos, hoje, que a rede de poderes é mais complexa do que identificarmos quem assina e quem obedece. O que as recentes descobertas da historiografia latinoamericana vêm revelando é que havia um jogo entre as partes civis e militares, para além da soberania de um dos polos. Carlos Fonteles, integrante da Comissão da Verdade, revelou, dias depois de publicarmos nossa resposta ao seu texto, um documento oficial que relaciona a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) à produção de armas para o movimento que derrubou o presidente João Goulart, em 1964 … desde o início, ninguém foi deixado de lado na farra da ditadura: civis e militares usaram as armas que tinham a seu alcance para derrubar toda sombra de mudança sobre o status quo”.

Pois bem. Em primeiro lugar, se existe “soberania de um dos polos”, no caso o militar, isso apenas confirma a tese que defendo. Em segundo lugar, não vejo novidade na constatação de que havia um “jogo entre as partes civis e militares”. A descoberta de um documento do SNI mostrando envolvimento da Fiesp no golpe, inclusive no fornecimento de armas, apenas reitera o fato indiscutível de que amplos setores do capital atuaram de forma decisiva na conspiração. Sobre isso, o trabalho pioneiro de René Dreifuss (1964: A Conquista do Estado) é cabal e irrefutável. Insisto: uma coisa é o golpe propriamente dito; outra é o regime instalado após a queda de Goulart. Pode-se chamar o golpe de civil-militar. Porém, instalada a Ditadura, prevaleceu o poder militar.

O Zagaia contesta meu argumento de que o uso da expressão “ditadura civil-militar” contribui para diluir a responsabilidade dos militares: “Em nossa resposta não deixamos de lado a violência militar, mas insistimos em lembrar que estavam associados até a medula aos desmandos civis. Enfim, os dois polos da equação devem ser devidamente julgados e condenados aos olhos da história”. Em seguida o Zagaia reconhece, ainda que de modo oblíquo, que também exijo a punição dos civis implicados nos crimes da Ditadura Militar. Mas o grupo considera intolerável que eu defenda como prioritária a punição dos militares que cometeram crimes de sangue.

Para os integrantes desse coletivo que não consegue criticar sem agredir, o simples fato de eu propor em primeiro lugar a punição dos militares que tenham praticado atrocidades faz de mim um praticante do “peleguismo de esquerda”, seja lá o que isso for.

“Ora, por que esta ordem?”, indaga o Zagaia. “Por que, primeiro investigar os militares e depois os civis, ou se ater ao primeiro grupo? Não nos venha com a conversa de que estamos querendo ocultar os militares na neblina civil, ou que estamos prestando um desserviço, por favor! Nossa suspeita é que esta insistência acabe por fazer justamente o contrário: ao destacar os militares, satisfaça o gozo civil [sic]… Deixar para amanhã o julgamento dos civis responsáveis pela barbárie é, a nosso ver, omitir-se em relação à história. Como se o fato de financiarem torturas e assassinatos fosse secundário diante de quem as realizou”.

A meu ver, são muitas as razões para que a prioridade em matéria de punição sejam os militares. A primeira delas, que deveria saltar à vista, é que são eles os responsáveis diretos pela maior parte dos crimes de sangue cometidos pelo regime militar, de torturas a assassinatos e desaparecimentos. Muitos deles foram identificados e sua atividade criminosa está suficientemente documentada, o que facilita a punição, desde que seja derrubado o abjeto bloqueio imposto pelo Supremo Tribunal Federal em 2010 ao julgar a Lei da Anistia, quando decretou a impunidade dos torturadores.

Mas a mais importante razão é que as Forças Armadas (FFAA) têm sido, historicamente, o esteio da dominação burguesa e o algoz das liberdades democráticas no Brasil. Sem elas não teria sequer havido o golpe de 1964. Desde sempre, na história do Brasil, as FFAA procuraram tutelar a sociedade, prestando-se a reprimir brutalmente os movimentos populares (Canudos, Contestado e tantos outros) e a impor soluções políticas conservadoras. Os torturadores e assassinos a serviço da Ditadura Militar não agiram por conta própria: a tortura e as execuções de opositores políticos foram instituídas pelos altos comandos militares. Tratava-se de uma prática institucional das FFAA naquele período. Era uma política de Estado: o terrorismo de Estado.

Reforma e punições

Disso resulta que não haverá verdadeira democracia no Brasil sem que as FFAA sejam submetidas a um processo de democratização ampla e profunda: uma reforma que inclua desde a revisão dos currículos e conteúdos das escolas militares até a reformulação dos estatutos e da sua configuração estrutural. A finalidade das FFAA deve ser exclusivamente a defesa nacional contra eventuais agressões externas. A chamada “Doutrina da Segurança Nacional”, voltada para o combate ao “inimigo interno”, e sintonizada com os interesses imperialistas dos Estados Unidos, precisa ser definitivamente repudiada e descartada. Obviamente, essa reforma implica a devida punição àqueles militares que praticaram atrocidades e violações de direitos humanos, bem como um pedido de desculpas à sociedade brasileira por esses crimes.

É claro que o financiamento da tortura equipara-se à própria tortura. A abertura de processos criminais e a eventual condenação dos militares que sequestraram, torturaram e assassinaram opositores políticos facilitará a punição de quem os subvencionou e os apoiou.

O fato de chamar-se de Militar a Ditadura não impede e nunca impediu ninguém de denunciar seus cúmplices e apoiadores civis mais notórios. A Ditadura é Militar também no imaginário popular porque a população sabe muito bem quem exerceu o poder político de Estado naquele período. Contudo, isso não nos proíbe de denunciar os Marinho e os Frias, os Delfim e os Boilesen, as grandes empreiteiras e grandes bancos, os Sílvio Santos, Paulo Maluf et caterva. Nem as multinacionais e os Estados Unidos.

A TFP, muito citada pelo Zagaia, foi irrelevante. Sua importância foi muito menor do que a dos aparatos civis de repressão, como os DOPS, a Polícia Federal e as assessorias e divisões de segurança instaladas nos ministérios, empresas estatais e universidades. Provavelmente ela foi mencionada pelo grupo apenas para servir de trampolim para a infame piada a respeito da família Pomar, que citei mais acima. Muitíssimo mais relevante foi o apoio dado pela Igreja Católica ao golpe, e posteriormente ao regime militar em seus primeiros anos.

Acrescentam os articulistas do Zagaia que “se, porventura, os civis foram deixados de lado pelos militares a certa altura — como afirma em seu artigo ‘Modismo’ — nada impediu que voltassem com força total pela porta dos fundos da anistia”. Esta é uma assertiva totalmente desconexa. A Anistia só ocorreu em 1979, portanto nos estertores do regime. Àquela altura, os poucos políticos de direita que poderiam ser beneficiados por ela já estavam mortos: Ademar de Barros (1969), Juscelino (1976), Lacerda (1977). Sem contar que persistem as suspeitas de que algumas das lideranças civis proeminentes (como Juscelino e Jango, também falecido em 1976) tenham sido eliminadas pelo próprio regime.

A leitura de Daniel

“Muitos de sua [minha] geração compartilham conosco o posicionamento de que a expressão ‘ditadura civil-militar’ é mais precisa para designar o que realmente aconteceu no Brasil dos anos de chumbo”, prossegue o Zagaia em defesa da sua tese, citando em seguida um escrito do professor Daniel Aarão Reis (Universidade Federal Fluminense): “São interessados na memória atual as lideranças e entidades civis que apoiaram a ditadura. Se ela foi ‘apenas’ militar, todas elas passam para o campo das oposições. Desde sempre. Desaparecem os civis que se beneficiaram do regime ditatorial. Os que financiaram a máquina repressiva. Os que celebraram os atos de exceção. O mesmo se pode dizer dos segmentos sociais que, em algum momento, apoiaram a ditadura. E dos que defendem a ideia não demonstrada, mas assumida como verdade, de que a maioria das pessoas sempre fora — e foi — contra a ditadura. Por essas razões é injusto dizer — outro lugar comum — que o povo não tem memória. Ao contrário, a história atual está saturada de memória. Seletiva e conveniente, como toda memória.”

Daniel é, na verdade, de uma geração anterior à minha. Eu o considero um historiador respeitável, o que não me obriga a concordar com tudo que escreva. Depois de pegar em armas contra a Ditadura, ele passou a rever radicalmente o passado. No texto citado (“O Sol na Peneira”), publicado na Revista Histórica da Biblioteca Nacional (83, agosto de 2012), ele chega a afirmar: “É inútil esconder a participação de amplos segmentos da população no movimento que levou à instauração da ditadura em 1964. É como tapar o sol com a peneira. As Marchas da Família com Deus pela Liberdade mobilizaram dezenas de milhões de pessoas, de todas as classes sociais, contra o governo João Goulart”. Dezenas de milhões de pessoas?!? O Brasil tinha, na época, pouco mais de 70 milhões de habitantes. Acreditar que esse suposto apoio aos militares tenha mobilizado dezenas de milhões de pessoas (20 milhões? 30 milhões?) é crer que cerca de metade da população ativa nacional saiu às ruas contra o governo em vias de deposição, ou logo após. Não é uma estimativa consistente. Daniel não documenta, nem fornece indicações precisas sobre tais manifestações do que chama de “multidões civis que apoiaram ativamente a instauração da Ditadura”, pelo contrário.

No mesmo artigo, o historiador não deixa de se contradizer ao afirmar o seguinte (atenção, Zagaia): “A ampla frente política e social que apoiou o golpe era bastante heterogênea. Muitos que dela participaram queriam apenas uma intervenção rápida. Que fosse brutal, mas rápida. Lideranças civis como Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Ademar de Barros, Ulysses Guimarães, Juscelino Kubitschek, entre tantos outros, aceitavam ou queriam mesmo que os militares fizessem o ‘trabalho sujo’ de prender e cassar, e depois, logo depois, fosse retomado o jogo político tradicional, marginalizadas as forças de esquerda mais radicais. Não foi isto que aconteceu. Para surpresa de muitos, os ‘milicos’ vieram para ficar. E ficaram por longo tempo. Assumiram um protagonismo insuspeitado – e inesperado. Como se sabe, o país conheceu cinco generais-presidentes. Ditadores. Eleitos indiretamente por Congressos ameaçados, mas não menos participativos. Passou-se a dizer que os três poderes republicanos eram o Exército, a Marinha e a Aeronáutica. Os militares mandavam e desmandavam. Ocupavam postos estratégicos em toda parte”.

Faço questão de repetir algumas das frases de Daniel: “O país conheceu cinco generais-presidentes. Ditadores … Passou-se a dizer que os três poderes republicanos eram o Exército, a Marinha e a Aeronáutica. Os militares mandavam e desmandavam. Ocupavam postos estratégicos em toda parte”. O que é isso, pessoal do Zagaia, se não uma Ditadura Militar?

A memória é e sempre foi um campo em disputa. Não existe “uma” memória atual, existem várias. A Folha de S. Paulo, por exemplo, procurou criar o jocoso conceito de “Ditabranda”, do que se arrependeu diante da forte reação contrária. Um setor da academia passou a empregar o termo suave (e genérico) “autoritarismo” para definir o período ditatorial. A maior parte da esquerda, que sempre falou em Ditadura Militar, nem por isso perdoou os setores e personalidades civis que prepararam o golpe, colaboraram com o regime ou foram cúmplices dos crimes cometidos. O papel da mídia no apoio ao regime, por exemplo, sempre foi denunciado, tanto como os empresários que financiaram a Operação Bandeirantes (OBAN) e outros instrumentos da repressão. Ninguém esqueceu-se de destacar que se tratava de uma ditadura cujo beneficiário maior era o grande capital, a grande burguesia.

Claro que a correlação de forças ao final da Ditadura Militar não beneficiou a esquerda; a derrota do chamado “socialismo real”, e o advento do neoliberalismo, no final dos anos 1980, rebaixaram o horizonte programático das forças políticas que defendiam o socialismo; e as visões sobre o regime militar modificaram-se na mesma medida em que o pragmatismo cresceu, paulatinamente, no interior da esquerda.

A leitura de Alípio

O Zagaia socorre-se também das seguintes palavras do jornalista Alípio Freire: “Chamar o golpe só de militar camufla a questão de classe. Foi uma ditadura civil militar. É uma questão capital-trabalho”. Sim, é uma questão capital x trabalho. Mas num país como o Brasil, em que as classes dominantes — sejam os antigos latifundiários, sejam os burgueses — sempre se valeram do Exército e das FFAA para reprimir duramente os anseios das classes subalternas, não há motivo para recear que a questão de classe seja camuflada pela designação “militar”. Os pobres das periferias, tratados a porrete e à bala pelas Polícias Militares, sabem disso perfeitamente.

Certas simplificações são perigosas e podem conduzir a graves enganos. Num artigo publicado em 2008, intitulado “Que mal pode afligir nossas Forças Armadas?” (Página 13 edição 70, p. 6-8: www.pagina13.org.br), o mesmo Alípio Freire insurgia-se contra o que chamou de “um corte que coloca de um lado os civis, e de outros os militares”, pois “tínhamos militares dos dois lados daquela trincheira e também civis”. Naquele texto, Alípio começou citando vários casos de militares de esquerda, ou legalistas, que se colocaram contra o golpe de 1964 e por isso foram torturados ou assassinados; assinalou o caráter burguês da Ditadura; e, ainda que incluisse entre os grupos que desfecharam o golpe “setores majoritários da mais alta cúpula das nossas Forças Armadas”, concluiu que “as Forças Armadas não agiram em bloco contra os interesses populares em jogo naquele momento” (!!!).

Finalmente, ao comentar no mesmo artigo a atitude do coronel Brilhante Ustra, torturador que procura eximir-se de responsabilidade pelos crimes que cometeu atribuindo-os a ordens recebidas da cúpula militar, Alípio escreveu o seguinte: “Ora, as Forças Armadas não poderiam aceitar enquanto conjunto uma pecha que as incrimina e enxovalha coletivamente, quando se sabe (até pelos exemplos com que abrimos este artigo) que esses crimes não podem ser atribuídos à Instituição, mas a alguns dos seus membros — e que são estes que devem ser levados à barras dos tribunais para serem julgados e punidos de acordo com a lei hoje vigente”. Portanto, segundo Alipio, os crimes cometidos “não podem ser atribuídos à Instituição” (!!!), ou seja, às FFAA!

Um raciocínio totalmente equivocado, segundo o qual o fato de existir uma minoria de militares que corajosamente resistiram ao golpe (“exemplos com que abrimos este artigo”) evidenciaria que as instituições militares, em seu conjunto, não podem ser responsabilizadas pelo que ocorreu. Como se o setor democrático e de esquerda das FFAA, derrotado e esmagado pelos golpistas, tivesse peso semelhante ao que ele mesmo chama de “setores majoritários da mais alta cúpula”. Como se a direita e o anticomunismo retrógrado não detivessem então (e ainda hoje) ampla hegemonia no Exército, Marinha e Aeronáutica.

Assim, a meu ver, o afã de demonstrar que a Ditadura foi “civil-militar” pode levar a erros como esse: o de tentar desvincular das FFAA a responsabilidade pela prática da tortura e dos assassinatos, como se não fossem as instituições militares as principais mentoras e executoras do terrorismo de Estado. Critiquei esse artigo de Alípio por meio de um texto publicado na edição 73 do jornal Página 13 (“As Forças Armadas de ontem e hoje e a Ditadura Militar de 1964-1984”), adiantando diversos dos argumentos que venho retomando nos artigos mais recentes. Ali afirmei, por exemplo: “A alegação dos chefes militares para livrar suas respectivas corporações da mancha desonrosa dos desaparecimentos, ‘suicídios’ e torturas sempre foi a de que eram resultado de ‘excessos’, inevitáveis numa ‘guerra suja’ etc. Este sempre foi o ‘argumento’ deles, nunca o NOSSO!”

Por fim, o Zagaia fala da necessidade de “desvelar o que estava acobertado pelo tempo … ressignificar o que sempre se pensou de maneira tradicional … revisitar o passado para compreendê-lo melhor tendo em vista a identificação de suas estruturas no presente e a construção de um futuro livre, onde a verdade possa ser conhecida por todos”. Ora, nem toda tradição é ruim, assim como nem toda ressignificação é proveitosa. Creio que se nosso compromisso maior é com a verdade, então devemos reconhecer que o regime que oprimiu e ensanguentou o país entre 1964 e 1985 foi uma Ditadura Militar, como bem assinalou o professor Romualdo Pessoa (Universidade Federal de Goiás) já em 2011 (vide http://www.gramaticadomundo.com). Encerro este artigo lembrando que o próprio regime não gostava de ser chamado de Ditadura Militar — e que não é à toa que multiplicaram-se interpretações que procuram atenuar o que de fato ocorreu. Quem luta por memória, verdade e justiça, pela punição dos torturadores e assassinos, militares ou civis, não deve se negar a dizer o que de fato foi: uma brutal Ditadura Militar. Se de fato se quiser identificar e punir seus cúmplices e beneficiários civis, é por aí que se deve começar.

 (*) Pedro Estevam da Rocha Pomar é jornalista

 

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